Precisamos falar sobre o Kevin de Lionel Shrive

Aletheia de Almeida

Primeiro, li O Jantar, de Herman Koch, uma história sobre como pais e mães, aparentemente normais, lidam com filhos bem-criados, mas fora da curva, violentos, com potencial para delinquência. Em seguida, após um “você adoraria esse livro, mas acho que não é um bom momento” e atraída por Lionel Shriver, mas ainda com medo de Kevin, li Dupla Falta dessa autora. Finalmente, munida de audácia e coragem, vi o filme de Lynne Ramsay, com Tilda Swinton, John C. Reilly e Ezra Miller, de título homônimo ao do livro de Shriver. Finalmente me senti preparada para conhecer a história de Kevin Khatchadourian, personagem principal de “Precisamos falar sobre o Kevin”, de Lionel Shriver (2003). Pensei que as marcas da autoria de seu ato estariam por toda parte; entretanto, o que me chamou atenção surpreendentemente não foi, como dizem, a genealogia de seu crime, muito menos o caráter fortemente psicológico do thriller (já tinha tido uma prova do poder literário de Shriver), mas a história de sua mãe, Eva Khatchadourian.

Para quem não viu o filme de 2011 e não entende qual o problema de Kevin, esclareço que ele é um daqueles garotos norte-americanos que planejam e realizam matanças em escolas porque sentiam-se vítimas de bullying. Quer dizer, voltando um pouco, Kevin é um personagem fictício, nada do que é relatado, em formato epistolar, aconteceu. E isso é o mais incrível do livro de Shriver: ela escolhe um tema premente, perturbador, incompreensível e lhe dá toques de genialidade e veracidade. Ficamos o tempo todo tão envolvidos pela história que é como se os personagens existissem de fato e os conhecêssemos das páginas dos jornais. Fiquei o tempo todo me perguntando, após o filme e durante a leitura, por que ele poupou a mãe da morte? Por que ele a deixou sobreviver? Por que fez o que fez?

Sabem como é tomar a ficção pela realidade? Sabem como é aquilo de ficar refletindo sobre uma história que nunca mais sai da sua cabeça? Sabem como é ler um livro com tamanha voracidade que, por mais que seja uma história macabra e dolorida, você não quer chegar ao fim do relato só para não se descolar daquele universo? Então, esse é o grande valor da obra de Shriver, a meu ver. Personagens extremamente bem construídos, assuntos tabus, pitadas de cotidiano --- uma obra magistral e atual. Acredito que Shriver disseca muito mais que o assassinato múltiplo perpetrado por Kevin, disseca a maternidade, disseca toda uma sociedade, disseca seu país e nossos tempos.

Mas vamos lá! Primeiro, aos personagens! Eva é uma profissional bem-sucedida, que descobriu, nos anos 80, o filão da elaboração dos guias de turismo para pessoas que viajam com orçamentos reduzidos. Conheceu o mundo inteiro, colhendo informações, em contato com as mais diversas culturas, para elaborar seus guias. Apresentar uma personagem assim, fora dos padrões do norte-americano médio, como era seu marido Franklin Plaskett, já dá margem a uma miríade de discussões sobre alteridade, aceitação da diferença, isolacionismo geopolítico e sociocultural do país e tantas outras questões levantadas pela autora a partir desse gancho. Eva, ela própria de origem armênia, já tem a aparência do exótico, do diferente. De qualquer forma, como acontece no país das oportunidades, tudo é possível para quem tem uma grande ideia e trabalha com afinco.

Eva traçou seu caminho, montou uma empresa de sucesso, encontrou um grande amor e seu lugar naquela sociedade. Vivendo em Nova York, com uma situação econômica favorável, o que mais faltava? Para Franklin, após cinco anos de um casamento feliz, faltava um filho que pudesse completar aquela felicidade e responder à GRANDE QUESTÃO das vidas das pessoas adultas (não me perguntem, também não sei o que significa...). Vamos acompanhando todos os desdobramentos da vida da família, por meio das cartas que Eva escreve a Franklin. Somos informados de que Kevin matou onze pessoas em sua escola e vamos acompanhando a angústia de Eva que tenta entender onde seu filho se torna um assassino (será ainda no útero?), as razões que o levaram a cometer os crimes, os porquês de o garoto ser tão cruel e frio. Ela também relata o que aconteceu com sua vida, com sua alma --- tendo sido totalmente dilaceradas pela tragédia.

Franklin, que nunca responde, parece culpá-la, como todos a seu redor, por Kevin ter-se tornado um monstro. Sempre leniente com o filho, detentor de um amor paternal que não questiona nenhum comportamento de Kevin ou mesmo que não mantém qualquer lastro com a realidade; Franklin, segundo Eva, apegou-se à versão que o próprio Kevin grosseiramente montou de si para o pai: de filho companheiro, incompreendido pela mãe, um pouco rabugento (afinal, que adolescente ou super gênio não se encaixa nesse perfil?), mas extremamente perspicaz e inteligente. O nascimento do filho rompe com o equilíbrio do casal, com sua rotina, com seu amor. Eva e, consequentemente, os leitores não entendem se de forma deliberada ou não --- ela está mais propensa a acreditar que, sim, o filho tinha um plano –, o fato é que Kevin consegue separar os pais.

Ela inclusive menciona isso: há homens (e eu diria mulheres também) que não conseguem amar seus filhos e seus cônjuges ao mesmo tempo. Como se fosse a maternidade e a paternidade fossem uma escolha obrigatória que os define (e suas uniões também) para o resto da vida. Ainda assim, todo esse amor não agremiou o respeito de Kevin pelo pai. Logicamente, as troças do filho quanto à profissão do genitor, ao gosto dele por esportes ou por séries antigas nunca foram flagrantemente abertas. Eva é quem vai revelando o Kevin, que ela sempre viu, a Franklin, nas cartas. Não tendo voz ou credibilidade, durante o casamento, o livro é a hora da verdade, a catarse de Eva: “agora você tem que acreditar em mim, Franklin!”. Infelizmente, o mal já havia sido feito. Não havia mais como voltar atrás. Essa falta de saída, ainda que se encontre uma resposta, é totalmente angustiante.

Celia, menina assustadiça, tímida e mediana, nasce quando Kevin tem uns 8 anos e é uma escolha isolada de Eva. Franklin não participa dessa escolha. Não deseja outro filho. Não confia que Eva possa ser uma boa mãe, aparentemente. E em seu coração de pai só parecia haver espaço para Kevin. Eva também não poderia amar ninguém mais, talvez, aos olhos do marido; ou, para ele, Eva opta pela estratégia errada ao tentar salvar o casamento. Mas é exatamente por isso que Eva precisa de Celia: ela precisa entender do que se trata a maternidade, precisa provar que não é ela a culpada pela personalidade destrutiva de Kevin, precisa amar e ser amada, precisa provar-se boa o suficiente para Franklin. A garotinha, como geralmente acontece com toda irmã mais nova, é uma vítima da idade mais avançada de Kevin. Mas, claro, Kevin não é um irmão mais velho como o que eu ou você podemos ter tido: ele é um psicopata que deixa suas marcas de perversidade na menina.

Sim, vamos falar sobre Kevin. Quando vi o filme pela primeira vez (revi uma segunda vez, após a conclusão do livro), Ezra Miller, quem interpreta Kevin, me assustou e comoveu. Segundo Shriver, Eva via no menino um espelho que não conseguia compreender. Seus traços armênios eram os mesmos, ele tinha saído de dentro dela, mas ela não o reconhecia como seu ou parte de si. O filme é fidedigno nesse aspecto. Mas ficam muitas reflexões de fora: a profundidade da relação de Eva e Kevin, a preferência doentia de Franklin por Kevin, as explicações às indagações quanto às razões que levaram Kevin a poupar a mãe, deixando-a viver. A diretora opta por adaptar um livro, densamente psicológico, por meio de flashes dramáticos e lancinantes. É uma excelente versão cinematográfica do romance, mas o livro oferece mais. Por exemplo, outro elemento essencial sobre o personagem do menino que fica de fora: a intensidade de sua desumanidade, por um lado; e sua enorme fragilidade e devoção filial (a Eva), por outro.

Shriver, habilmente, por meio do estarrecimento contundente de Eva, consegue delinear essa contradição aparente, num único personagem. À medida que Franklin recebe o relato sobre “o que de fato aconteceu no passado, enquanto você protegia nosso filho”, os leitores acompanham Kevin em sua infância e adolescência, todo o martírio que infligiu à mãe, todas as pequenas e grandes malvadezas a que submeteu a irmã, o amor fingido que dedicou ao pai, sua parca vida social, seus insignificantes interesses, seus hábitos sociais, alimentares e biológicos grotescos e agressivos, o plano arquitetado para eliminar as personalidades consideradas especiais da escola, que tanto o incomodavam. Adicionalmente, vamos entendendo um pouco mais a relação entre Eva e Kevin, no presente, quando ela o visita, por dois anos, após o crime, na cadeia infanto-juvenil da localidade.

Sobre os temas-tabus, uma discussão importante e subliminar é sobre o lugar da maternidade na vida das mulheres na contemporaneidade. Toda mulher precisa ser mãe? Uma carreira bem-sucedida é suficiente para tornar uma mulher plenamente feliz e realizada? Afinal, contentem-se, há mulheres que não lidam bem com a maternidade (e não é porque podem ter gerado um serial-killer), que não conseguem amamentar, que se ressentem por ficarem fora do mercado de trabalho. É algo do tipo: não é porque é mulher que tem que ser maternal. Outro tema primordial a meu ver é o da responsabilidade dos pais sobre os atos dos filhos. Claro que geramos, criamos, educamos e somos responsáveis por nossos filhos, mas até onde? Qual o limite? Eva perde tudo, a família, a empresa, o respeito das pessoas, a dignidade. É agredida e achincalhada, após o crime de Kevin. Suporta com tamanha abnegação todo esse martírio pós-tragédia que fiquei me perguntando: ela é realmente culpada também? A esse ponto? Shriver também toca em outros temas de alta voltagem: o papel do pai na educação dos filhos; a sexualidade, a individualidade, a privacidade, a violência banalizada que se verifica crescentemente entre os jovens hoje em dia; o papel da mídia na disseminação de tragédias como essa; os limites dos direitos e obrigações individuais e a judicialização do cotidiano no país; remorso, relações de poder, culpabilidade.

Tudo isso é pontilhado por discussões político-sociais reais e prementes que nos remetem ao período de vida de Eva e Kevin, nos anos 80, 90 e início dos anos 2000, nos Estados Unidos. Republicanos versus democratas nas definições de impostos e na determinação da saúde da economia; a diferença de bem-estar e prosperidade entre os países do mundo em comparação aos EUA; as eleições disputadas por Al Gore e George W. Bush que culminaram com o embate de recontagem infindável de votos na Flórida; a invasão do Kuwait e a transmissão da guerra ao vivo; casos reais de matanças em escolas e o que parece estar acontecendo com a juventude do país; controle e posse de armas; obesidade e futilidade. Para onde, afinal, os Estados Unidos estão caminhando é o que parece querer saber a autora.

Enfim, depois de me aproximar tantas vezes da autora e desse livro, mas me afastar por temor, mergulhei na leitura de “Precisamos falar sobre o Kevin” porque, afinal, havia presenteado uma amiga com o romance. Como gostamos de histórias acerca da maternidade e filhos difíceis e, no ano anterior, havíamos visto juntas “Mommy”, de Xavier Dolan, era primordial lermos o livro de Shriver juntas. Eu, de minha parte, tenho uma queda por livros que abalam minhas estruturas; que me fazem refletir sobre tantos aspectos de uma mesma história, por tanto tempo; que me apresentam a um universo completamente impensado e tão real. O livro é sensacional, uma obra-prima, de fato. Tive dificuldades com a tradução para o português, mas decidi não deixar que isso atrapalhasse o andamento da leitura da obra. Espero que essa resenha convença ao menos minha amiga a lê-lo. Não é preciso ter medo de Kevin. Aprendi muito com o desvelamento de sua personalidade e de seu universo, talvez o toque magistral da criação de Lionel Shriver, uma grande e sublime autora.

 

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