Resenha: Só, com peixes, de Adriane Garcia

Sidnei Schneider

Esta deve ser a resenha mais curiosa e inusitadaque já iniciei a escrever. Conheci uma poeta e seu livro, antes apenas amiga de rede social, em minha passagem por Belo Horizonte, com a sensação de sonho por estar diante de uma criadora pródiga emmotivos aquáticos recorrentes na minha poesia, sem que jamais nossos textos tivessem se tocado. Trata-se da poeta e historiadora mineira Adriane Garciae de seu último livro Só, com peixes(Confraria do Vento, 2015), prefácio de Nelson de Oliveira. Antes, ela publicou Fábulas para adulto perder o sono, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura Helena Kolody, e O nome do mundo, sendo ex-aluna da oficina do poeta gaúcho Paulo Bentancur, que nos deixou este ano.

O livro começa tratando do universo ao qual estará integralmente dedicado, numa unidade temática que extrapola a mera soma das partes: “Tem vezes que chego em casa/ E tomo um copo de chuva// Desde aqueles tempos em que/ Ivo viu a uva/ A palavra clamava inundação// Na videira o que me interessava/ Era o líquido” (Ébria). Essa ebriedade conquistada através da chuva, marcada pela distensão do tempo da infância à fase adulta, abarcará a vida como ela é vivida nomundo antropomorfizado dos peixes.Ao acolher o conjunto, “O cardume é um peixe só” (Pedra-peixe), possibilita incrível imagem de movimento.

Quem escapa do seu malogrado destino social, num país ultimamente ordenado para carrearverbas públicas e privadas ao improdutivo capital financeiro, merece a atenção da poeta: “Quem vê aquele menino nadando/ Sem jamais blasfemar a água/ De seu batismo// Não sabe que ele é um peixe/ Que escorregou do anzol/ Pro rio” (Sobrevivente). Todavia, seja qual for o assunto, “É preciso saber bem o que se passa/ E não enfiar a boca em qualquer/ Salvação” (Maturidade).

A peregrinação dos salmões, que vão reproduzir e morrer na mesma água doce em que nasceram, gera interessante reflexão acerca da nossa continuidade: “Filhos nunca saberão/ Nadadeiras laceradas/ Exceto quando forem/ As suas” (Salmão). A cor da água-viva fulgura em “É molhada mesmo quando/ Caminha, de mármore, seus passos” (Medusa). A sereia benévola deseja que o canto funcione, sem que, no entanto, o amor se afogue, num título que evoca a cor do mar e um veneno (Cianídrico). Em outro momento, a mulher-peixe é atingida por um arpão: “O homem não se importava com/ Levar uma sereia/ De rosto desfigurado e sem/ Coração” (O arpão). Porém, afirmando-se enquanto peixe-pessoa, “Sendo/ Ela nem precisa/ De espelho” (Sereia).

De nada serve proteger o (ou proteger-se do) amor, dizem versos muito criativos, com termos que não se esperaria ante o tema: “Mergulhar com/ Escafandro/ Não seria um mergulho// Seria como/ Pular de um prédio/ E nãopartir/ A cabeça” (Amor).

A tentativa de uma menina, quando um peixe “Pulou para fora/ Do seu pulso”, não se desenha em oblíqua apologia, mas em superação. Como nos versos de O velho e a morte de Jean de La Fontaine (1621-1695), nos quais um homem cansado de carregar seu feixe de lenha o lança ao solo e clama pela morte, mas quando esta surge com o gadanho, ele apenas roga que o ajude a pôr o feixe às costas: “O peixe significava/ Uma páscoa/ E outra vida” (Menina de crônica depressão).Alguns poemas têm o final tão surpreendente que, para assegurar o prazer da leitura, não me atrevo a citá-lo (A multiplicação dos peixes e Mulher na pescaria).

Os versos “Ninguém se pergunta/ De onde vem a água?” fazem recordar da resposta que ouvi dos habitantes de Mucajaí-Mirim, no interior de Roraima, que costumam se interrogar sobre essas coisas: a água dos rios desceria pelo arco-íris; os filhotes de peixe cairiam do céu dentro das gotas de chuva, o que explicaria sua presença no ambiente circunvalar das lagoas. A voz poética responde a seu modo, escancarando as dores do mundo: “Ninguém desconfia/ Que os peixes choram?” (A origem da água). Mais adiante, no entanto, propõe ir além: “Não vejo salvação alguma/ Se meus olhos constantemente/ Turvam” (A corcunda). Até encontrar nova síntese: “Cegos que/ Finalmente enxergaram/ Para além das lágrimas” (Procissão) e “Depois que passaram lama/ Nos seus olhos/ Ela voltou a enxergar” (Lama).

Fecha o livropoema correspondente, no sentido baudelairiano do termo, ao do início: “Um dia, minha mãe trouxe um cascudo/ Vivo/ Havia fome para comê-lo/ Mas encantamento para pô-lo/ No tanque/ Meus cinco irmãos se cansaram/ De um peixe inerte e escuro/ Eu grudei a minha boca/ No fundo” (Eu, cascalho e cascudo). Pouco antes, ao se encaminhar para a areia,uma espécie de conclusão:“O sol bate nos grãos/ E é tão real/ Do sonho do mar/ Só trago o sal” (Despedida). Seguindo-se nova necessidade, “Estou urgente ávida/ De um sonho” (Afã de outros absurdos), porque, afinal, a poesia-vida continua.

 

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