O relacionamento familiar doentio abordado na novela Dois no Espelho
Autoria de Jacira Fagundes
Publicado em 2007 - 2ª edição em 2014
A doença física como escolha
A história de Dois no Espelho foi arquitetada usando como alicerce a doença física. Queria focar um ambiente com grandes chances de desenvolver uma história, não só sobre o mal físico, como sobre outros males desencadeados por esse mal físico. Então instalei a doença física como motivação para o desencadeamento de passagens extremamente doentias que envolvessem personagens com um grau extremado de culto à dor, do físico, passando pelo moral e chegando ao psíquico.
A doença paralisante como metáfora
A obra não pretende classificar a doença em foco, mas o mal provocado no ser doente. No entanto fui pesquisar sobre diferentes males e decidi-me por algo indefinido, com probabilidades genéticas, de difícil e conturbado diagnóstico, algo paralisante, como patologias múltiplas nos membros inferiores. Não entrei na complexidade da doença para evitar imprecisões quanto à ciência médica e principalmente para usar a paralisia de membros inferiores como metáfora - o motivo literário era a paralisia dos personagens nos gestos, na comunicação, no relacionamento, na vida , enfim.
A doença física na literatura
Outra motivação para buscar a doença física como foco foi a escolha de um diferencial na literatura. Poucos autores tratam da doença física em livros: Leon Tolstoi com a novela A morte de Ivan Ilich; Saramago com seu Ensaio sobre a a Cegueira e uma obra que encontrei por acaso – Valsa Negra – de Patrícia Melo em que o personagem tem câncer. Neste caso, a dor física como foco é uma escolha pouco convencional na literatura, o que oferece peculiaridade à narrativa em questão.
A doença – realidade e ficção – a construção dos personagens
O mal físico de uns ou de alguns dos membros costuma detonar comportamentos desencontrados numa família, desde os menos danosos até os mais complicados e doentios. Na ficção, que é o caso de Dois no espelho, os personagens desenvolvem comportamentos obsessivos e contraditórios que acabam por eclodir em amor e ódio entre os dois irmãos protagonistas. Ambos passam por inobservâncias de ordem moral como pequenos furtos, mentiras e omissões, uso de drogas e embriaguez. São esses atos relatados numa sequência que não apresenta ordem cronológica, que vão fazendo a construção dos personagens.
Anairam apresenta Mariana
Mariana, já no início da narrativa, é apresentada como uma mulher portadora de doença física provavelmente hereditária. Logo se fica sabendo de sua conduta arredia e escamoteada, adiante se toma conhecimento de sua “maldade” em relação ao acidente provocado contra o irmão ainda bebê, e sua consequente culpa, ao negar tratamento a si mesma para o mal que lhe acomete, É o círculo se fechando: provocar o mal ao outro, e culpar-se abraçando a própria dor. É Anairam quem acompanha Mariana obsessivamente com o olhar, um olhar que vê e percebe além do que é visto, que julga, condena e registra de forma compulsiva num dossiê. No primeiro capítulo, sabemos do agravamento do mal em Mariana pelo olhar do irmão.
Mariana apresenta Anairam
Já no segundo capítulo é Mariana quem nos apresenta Anairam, um homem também portador de mal físico num dos pés, ficou com um aleijão no pé causado por acidente. Logo ela nos relata os medos e desconfianças do irmão em relação a tudo e a todos – as buscas de segredos, a atenção exagerada a ruídos e sombras, o destempero nas relações, o desajuste emocional e mental. Durante a leitura do dossiê, Mariana não acompanha o irmão com o olhar, mas com a lembrança, porém é como se o visse. Relata na medida em que lê, surpreende-se, critica e contesta o texto escrito pelo irmão.
Relacionamento familiar na realidade
Nossa experiência de vida compartilhada dentro da instituição chamada família nos oferece panorama rico em aspectos positivos e negativos do relacionamento humano. Na família ideal as pessoas coabitam na firme intenção de se adaptarem, se harmonizarem e se ajudarem ao longo de vidas que transcorrem como rios caudalosos. Existe, nesses núcleos familiares, amor e entendimento com força de vencer as adversidades e provações que o transcorrer da existência costuma oferecer. São pessoas que se encontram unidas pelo afeto e que se sentem em comunhão com o seu outro, seja irmão, pai, mãe, os velhos ou os jovens próximos.
Não é o caso de inúmeras famílias onde pessoas se submetem a autoritarismo, violência, maus tratos, animosidades, discórdias e outros tantos comportamentos velados e inaceitáveis, na maioria das vezes, sob ameaças e sentimentos de culpa e vinganças.
Relacionamento familiar na ficção – o subterrâneo nas relações
A novela Dois no Espelho traz esse segundo quadro familiar para a reflexão do leitor ao apresentar uma família com sérias dificuldades de comunicação. As mentiras e os segredos constituem o subterrâneo que alicerça as relações entre a mãe e os dois filhos e entre irmão e irmã. A mãe exerceu poder sobre o marido, homem taciturno e submisso que morreu prematuramente. Em Anairam há um desejo muito grande de aproximação. Já em Mariana, é visível a necessidade de afastamento do olhar devasso do irmão. Cenas de ciúmes, mágoas e acusações permeiam a narrativa, entremeadas de momentos lúdicos e de forte afeição. Inexiste o bem e o mal estanque em cada um, ambos podem ser vítimas e algozes, capazes de atrocidades e de proteção. São personagens ficcionais, porém verossímeis em seu caráter extremado.
O submundo existente na realidade e na ficção
Outro aspecto bastante desenvolvido na trama é o submundo que existe em cada um dos protagonistas. Na vida real, a educação e a moral adquiridas ao longo da vida nos fortalece e orienta nosso caminho para a prática do bem. Daí porque não saímos por aí a agredir, insultar, acusar ou matar o semelhante. Porém o cruel é que tudo de bom ou de tenebroso está aí, a nosso dispor. E há aqueles que os usam e até sem culpa. Em Dois no Espelho, os personagens usam deste “poder dispor de qualquer ato” até as últimas consequências. Uma comunicação às avessas, que busca compulsivamente e sem o devido controle a intimidade com o outro e suas mazelas.
A dualidade através do espelho
Anairam acompanha Mariana com um olhar que a invade. Na visão que faz da irmã percebe a si próprio como igual. O mesmo dá-se com Mariana. Ela percebe a si mesma através do olhar do irmão e tudo se confunde. A verdade dos fatos não está com ele ou com ela, os ressentimentos e as queixas estão em ambos e são tais sentimentos que fazem, mais do que o retrato do outro, o próprio retrato.
Reflexos que se alternam, uma vez que os protagonistas nunca estão a sós diante do espelho. Mas é preciso destruir a metáfora do espelho, para enfim ver-se cada um a si mesmo desvencilhado do outro. É o que traz a salvação para ambos, de maneira trágica ou confortada.
Palestra proferida pela autora na Livraria e Café Letras e Cia, em 2008, em Porto Alegre