Manoel de Barros e a moça na vitrine

por Jacira Fagundes

             Manoel de Barros, um dos mais aclamados poetas brasileiros da contemporaneidade, nos deixou no dia 13 de novembro deste ano.  Foi contribuir com sua fala comprida, suas palavras inventadas nos momentos poéticos da eternidade, junto a tantos que já nos deixaram – para citar somente 2014, Ariano Suassuna e João Ubaldo Ribeiro. E também Gabriel Garcia Marques, porque a arte não tem fronteiras.

            Assisti no Cine Bancários, numa tarde chuvosa, o documentário sobre a vida de Manoel de Barros. Pura magia, saí do cinema pisando macio na descida da ladeira, para não desacomodar as lembranças do que vira na tela. E então parei para olhar aquela moça.

            O que havia de semelhança entre o poeta Manoel de Barros e aquela mulher jovem apoiada nos calcanhares junto à vitrine da livraria, lápis e papel na mão? Que mulher jovem? Qual livraria? Me questionariam alguns, pensando tratar-se de uma pegadinha.

            Aquela moça, atenta aos traçados do capista, atenta ao seu próprio e acanhado traçado, lápis bem apontado sobre a folha branca, você não viu? Eu insistiria.

            Pois eu a vi, e parei e acenei pra ela enquanto ela me devolvia o sorriso e eu agradecia tão surpreendente aparição.

            A moça pareceu-me humilde, não chegava a ser andrajosa, mas a pobreza se entranhara nas vestes, no rosto, cabelos, e no amontoado de trastes que trazia com ela.

Eu saía de uma sala de cinema, vinha extasiada após ter assistido ao documentário Só dez por cento é mentira, cinema de excelente qualidade sobre a vida e obra do imensurável Manoel de Barros.

            No documentário Manoel criança, Manoel jovem , Manoel velho, Manoel filho, Manoel pai, Manoel esposo. O poeta de ontem, de hoje e de sempre, que viveu como poetou. Na ociosidade, no claro-escuro de seus poemas, no interlúdio, ainda fazendo poesia como gente grande. Mas Manoel de Barros nunca seria gente grande, embora, hoje sabemos, vivesse por 97 anos. Pesados anos para nós, seres comuns, para ele provavelmente leves como os sons das palavras que confessou escutar mesmo quando não pronunciadas. Manoel tinha sede das palavras, elas faziam todo o seu mundo. No documentário falou pouco, riu muito, olhos apertados e gargalhada solta. Mas discorreu seus versos como se entoasse canções cristalinas. E escreveu com o prazer do sumo, da essência, do indelével e inigualável que lhe conferiram o talento e o ofício.

            Deixei a sala de cinema ungida por tamanha comoção; evidente que meus pulmões inspiravam e exalavam ar...te. Ainda estaria assim respirando por todo o caminho de volta não chamasse minha atenção, aquela moça encostada na vitrine.  

            A poucos passos, na saída do cinema, há uma livraria. Está instalada num prédio antigo, uma sala ampla, na frente uma vitrine igualmente ampla que permite ao livreiro expor uma variedade razoável de obras.

             Pois a jovem mantinha um bloco de folhas brancas sobre os joelhos e traçava com o lápis as primeiras linhas na folha. Copiava a imagem de capa de um dos livros expostos, elegera a sua obra, no momento não para ler, mas para expressar sua arte através do desenho.

            Certamente, a posição em que se encontrava era incômoda e a escassa luminosidade da vitrine também lhe oferecia visão deficiente. No entanto, ela se encontrava ali atendendo a uma necessidade, digamos do espírito, não a uma necessidade básica qualquer, o que me pareceria natural. Julguei-a feliz, sorriu diante de meu sorriso e de minha surpresa, reconhecidamente preconceituosa. A jovem revelava o mesmo sorriso e o mesmo fascínio perante a arte que o poeta há pouco revelara no documentário. Eu obtinha a confirmação naquela cena modesta do que apreendera em relação à poesia. E por fim, eu criava laços de semelhança entre a moça com seu desenho e o grande Manoel de Barros com seus poemas.

            Não o mesmo rigor artístico, nem a mesma expressão de talento; eu não seria leviana a este ponto. O que me fascinou na cena foi o olhar meticuloso e detalhista que a moça dirigia para o objeto de toda sua atenção naquele instante – o desenho na capa do livro. De certa maneira, apropriava-se da imagem ao transferi-la mediante o próprio traçado para a folha de papel. Deixava transparecer, na posição tosca em que se encontrava, a mesma leveza do poeta diante do objeto inusitado. Ele a palavra, ela a imagem. 

            É que a arte, felizmente, se populariza. Vem de algum tempo se espalhando entre as diferentes camadas sociais, ganhando precursores e adeptos fora das galerias e dos espaços ditos culturais. Está nas calçadas, nas vilas, nos centros comunitários e públicos. A arte não faz distinção de classes ou de culturas. É arte, é democrática e deve ser consumida ou buscada por todos e por cada um, assim como o pão, o abrigo e a segurança.

            A moça na vitrine conquista espaço diante de um público que passa e pouco olha. A presença disseminada – dela e de tantas outras como ela – ajuda a afastar das mentes tolas a reação de surpresa, cedendo lugar ao respeito à arte e ao artista.

            De minha parte, tivesse eu talento, criaria um belíssimo quadro: a gargalhada do poeta e o olhar da jovem focado no traçado na folha; ambos emoldurados por uma luz

de intenso brilho.

 

Jacira Fagundes é escritora. Dedica-se à literatura direcionada ao leitor adulto e ao leitor infanto-juvenil. Integra, entre outras,  a Confraria Reinações – leituras e análise de obras infanto-juvenis – e a Confraria SELUS, de Arte Postal. É coordenadora da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – Regional RS.

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