Contos
Escalada do Destino
Jacira Fagundes
Escalada do destino
Toda a vida fora tempo de escassez. Primeiro a fome, logo os primeiros furtos, depois as surras, as ruas sem volta.
Maria do Socorro levava a criança a cabresto. Na cacunda, feito corcova, trazia a mochila com os poucos utensÃlios para o combate do dia a dia. Dias intermináveis. Dias de espera. De destino traçado.
Muitas orações ela já fizera a sua padroeira. Agora cansada, desconfiava que a Santa não mais a escutava. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro a abandonara de vez. Também a Santa desistira dela. Orasse o quanto orasse.
A criança abrira os olhos. A mãozinha deslizava entre os botões da blusa, enfiava os dedinhos a procura do seio da mãe. Maria ainda conseguia produzir leite naqueles seios ardidos no bico. Doloridos. Exaustos. Murchos. E a menina ensaiava o jogo da busca.
Maria do Socorro trotava sem fé na Santa, mas não interrompia a escalada da rua. De repente acabara o declive. Era lomba pra cima, terreno Ãngreme, calçamento hostil. A criança começara a chorar. A mulher oferecia a chupeta, primeiro com delicadeza, depois com impaciência.
Maria precisa fazer parar o choro. A vida tinha ensinado a mãe o que era fome. Mas a menina ainda não sabia. E o leite fraco, pouco, ralo, era o oásis para a criança.
Não lhe restara alternativa, desde que a polÃcia a expulsara da crakolândia. Desse um jeito de entregar a criança a um parente, a um asilo. Contanto que tirasse a pequena das ruas. Depois voltaria a seu lugar, entre seus pares.
Fora indicado o Conselho Tutelar e Maria, com a menina nos braços, foi até os homens da lei e da justiça. Sem forças, acatou a condição de se afastar da filha pelo tempo necessário.
Iria, sim, cumprir o acordo. Somente desta forma, teria consciência da vida errante. Questão de tempo.
Maria volta a subir a ladeira. Está só. Os braços ao longo do corpo. Para. Hesita. Mais pra cima, vê a capelinha junto à casa que a aguarda. No alto, a imagem iluminada de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Maria tenta escutar as palavras da Santa sopradas no sino da igrejinha. ? Obrigada, minha Santa! ? reza baixinho.
O vibrar da sineta na Casa de Acolhimento ecoa por todo o morro.
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