O mito do amor romântico
 



O mito do amor romântico

por Solon Saldanha

Não é de hoje que nos é vendido o mito da existência do amor romântico, apresentado como um ideal que todos precisamos alcançar. E passamos então a buscar uma relação a dois que será simultaneamente composta por cuidado mútuo, companheirismo, aconchego e sexo de qualidade, tudo obtido através do convívio com uma única pessoa, ad infinitum. Evidente que todas essas coisas existem e que muitos conseguem ter mais de uma delas, ao mesmo tempo. Mas gabaritar essa lista quádrupla não é uma conquista corriqueira.

Primeiro, vamos esclarecer que o cuidado mútuo é algo interno, que diz respeito apenas aos dois, no relacionamento. São as atenções cotidianas e simples – ou não –, como cuidado com a saúde e com o bem estar do parceiro ou da parceira, a divisão de tarefas, a compreensão de que há momentos em que se precisa de colo e outros tantos nos quais se quer apenas silêncio e mesmo distância. O companheirismo é mais ou menos a mesma coisa, mas voltado ao que é externo. Como torcer pelo sucesso, estar presente naquilo que o outro faz, ir junto a lugares mesmo quando não do seu maior interesse, proteger e ser parceiro ou parceira diante de quaisquer problemas, mesmo os profissionais e familiares. Por sua vez, o aconchego é a intimidade, o prazer de ter um espaço comum, o agasalhar no frio, comer pipoca junto ao ver um bom filme na televisão, cozinhar algum prato, dormir de conchinha. E sexo eu entendo não ser necessário explicar aqui. No que se refere à qualidade, se subentende que seja do agrado de ambos, com respeito ao desejo e às limitações de cada um, em troca apropriada de carinho e atenção.

É possível mesmo que se encontre tudo, conforme esta fórmula ideal. Entretanto, esperar que tal aconteça o tempo todo, sinceramente não se trata de uma pretensão que tenha amparo na lógica. Acho que nem na estatística. Não acontece no cotidiano das relações, porque sempre existem desgastes que são trazidos pelo convívio e pelo tempo. Porque os descompassos são naturais, acontecem ao longo da vida. Assim sendo, se torna muito importante, até mesmo para a nossa saúde mental, se dar conta de que o ideal é apenas isso: um ideal, sem o compromisso de ser alcançado. Mais do que tudo, temos que entender que acreditar nesse amor romântico que nos é vendido pela sociedade, de certa forma seria como colocar sobre os ombros de outra pessoa o peso de se tornar responsável pela nossa felicidade. O que é injusto.

Se não estamos recebendo simultaneamente tudo aquilo que em algum momento nos ensinaram que se deveria receber o tempo todo, não existe uma culpa, uma responsabilidade. Até porque nós também não temos como garantir essa reciprocidade permanente. Existem momentos nos quais um ou mais destes itens estará em alta, com outros em baixa. A gente não acorda bem todos os dias, há indisposições que são físicas e outras não. Mas elas sempre aparecem, sejam quais forem. Belchior, na sua canção Como Nossos Pais – que na interpretação de Elis Regina beira à perfeição – afirma que “viver é melhor que sonhar”. Até pode ser, mas a diferença é que sobre os sonhos que se sonha acordado a gente tem um relativo domínio. Sobre os acontecimentos da vida real, apenas muito raramente isso acontece.

O modelo do amor romântico foi uma invenção intelectual. Não se pode esquecer que na maioria das sociedades humanas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, as pessoas em passado não muito distante primeiro casavam e depois procuravam encontrar o amor. Apenas mais tarde, quando se associou o amor com felicidade e também com os relatos trazidos pela literatura tendo que ter um final feliz, houve uma inversão. Ame primeiro e case depois, se tiver sorte de também ser amado ou amada pela mesma pessoa. A alternativa se tornou ficar sofrendo de amor, porque algo tornou impossível a sua realização. Como o caso clássico de Romeu e Julieta.

O imaginário social diluiu conceitos e sentimentos, tornando cada um deles uma construção apresentada como “natural”. E essa naturalização se tornou recurso para estabelecer, por exemplo, os papéis que deveriam ser representados por um ou outro gênero. Todos acreditamos nisso e acabamos caindo numa armadilha. Os contos de fadas precisavam ser reais, a perfeição é o mínimo que se aceitava e aceita. Mas neles a princesa fica no castelo, suspirando, enquanto aguarda a chegada do príncipe.A felicidade vem de fora e só chega quando formamos uma família dessas de comercial de margarina. Não tenho nada contra elas e até torço que venham a ser a maioria, pelo menos naquele aspecto tão saudável de todos os que estão sorrindo enquanto tomam seu café da manhã. Só entendo que isso é difícil. Do mesmo modo que acredito existirem muitos modos de sermos plenos, seja sozinho ou acompanhados. E isso é o que verdadeiramente importa: a plenitude, que é uma forma sublime de amor.

 

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