Expressões com origem na escravidão
 



Expressões com origem na escravidão

por Solon Saldanha

Não são poucas as expressões que usamos no nosso dia-a-dia sem a devida noção de sua origem. E muitas delas, acreditem, têm histórias associadas ao vergonhoso período da escravidão no Brasil. Ou seja, são agora aplicadas com um sentido socialmente aceito, diferente do primeiro, talvez apenas porque as pessoas não conheçam como elas surgiram. Vejamos hoje apenas quatro, entre tantas que existem:

Disputar a negra – Essa todo desportista ou jogador sabe o que significa. Quando os confrontos anteriores terminaram empatados, ou com número de vitórias iguais para dois contendores, eles se enfrentam uma última vez para ver quem levará a vantagem final. É o desempate, a decisão definitiva. Mas sua história é bem simples: senhores de escravos quando se envolviam em alguma disputa apostavam a posse de uma mulher negra. Ela era o prêmio, o brinde, o gozo da vitória literalmente falando. Ou seja, há misoginia e estupro no seu surgimento.

Lavar a égua – Usada no sentido de “se dar bem”, conseguir uma boa e inesperada vantagem ou lucro. Começou devido ao fato de alguns negros escravizados que trabalhavam em minas escondiam pequenas pepitas nas crinas nos animais e, depois do trabalho diário, se ofereciam para lavá-los. Era uma rara oportunidade de recuperar o ouro que haviam escondido, que seria posto em local seguro até que somasse quantia possível para comprar sua liberdade. Quando descobertos, muitos eram açoitados até a morte.

Fazer nas coxas – Embora exista quem prefira apontar para essa uma conotação de ordem sexual, a verdade é bem outra. A expressão é hoje usada para identificar algo feito às pressas, sem capricho, sem a devida qualidade, algo impreciso. Surgiu quando escravos moldavam nas suas coxas as telhas de barro que produziam para seus senhores. O resultado é que o produto final ficava irregular, com tamanhos diferentes, de tal forma que na hora de serem as telhas utilizadas os encaixes não davam certo.

A dar com pau – É dito sobre existir muita coisa ou muitas pessoas em determinado local. Por exemplo: o evento tinha gente a dar com pau. Mas é muito triste a história desse uso popular: nos navios negreiros, havia quem preferisse morrer antes de chegar ao destino e se tornar um escravizado. Na travessia, acorrentados, muitos dos negros faziam greve de fome. Em função disso, para não “perder” parte de sua carga valiosa, os responsáveis usavam uma grande colher de pau para obrigar a maioria a se alimentar. Ela era enfiada a força goela abaixo dos aprisionados, contendo uma suspeita ração de subsistência. Mas a quantidade ofertada era a maior possível, até para que evitassem a repetição do ato muitas vezes. Ou, quando não havia fartura, vinha com a ironia dos algozes, dizendo que eles estavam comendo demais.

Tem caroço nesse angu – Essa expressão é usada quando se quer dizer que há algo errado, suspeito, que as coisas não são de fato aquilo que estão parecendo ser. Ela surgiu porque os negros escravizados recebiam como alimento, nas refeições, apenas um prato de angu de fubá, que é uma espécie de polenta. Mas as escravas que lhes traziam os pratos uma vez por outra conseguiam esconder nacos de carne ou pedaços de torresmo no meio. Quando os proprietários suspeitavam que isso estaria acontecendo, usavam a frase que até hoje é conhecida e utilizada.

Para inglês ver – No ano de 1830 a Inglaterra exigiu que o Brasil não mais realizasse tráfico de negros, que eram trazidos a força da África como escravizados. Potência mundial daquela época, o país europeu queria que nosso país elaborasse leis que coibissem a prática. Fizeram isso não por serem “bonzinhos”, mas porque os traficantes prejudicavam seus interesses na costa ocidental africana. O seu desejo foi acatado, mas apenas no papel. Todos os brasileiros sabiam que a tal lei simplesmente não seria cumprida, o que acontece até hoje com muito texto legal por aqui. Assim, surgiu a expressão, que significa algo para enganar terceiros e a opinião pública, que não tem valor real.

Encher o bucho – Nas minas, onde a mão de obra escrava era utilizada amplamente, esses trabalhadores tinham diante de si um buraco que era escavado na parede, conhecido como “bucho”. E lhes era exigido que tal espaço fosse preenchido com ouro que encontrassem, antes de estarem liberados para receber seu quinhão de comida. Ou seja, só eram de fato alimentados com uma tigela de ração aqueles que atingissem a cota. Hoje a expressão tem uma conotação praticamente oposta, pois “encher o bucho” é aplicado quando se come em demasia, quando a pessoa se alimenta fartamente, se empanturra.

Espírito de porco – Há quem atribua a origem dessa expressão a certos preceitos religiosos. Isso porque tais animais têm sua imagem associada com falta de higiene, que por sua vez remete para impureza, sujeira. No fundo era quase isso, só que com algumas diferenças de ordem cultural. Começou a ser usada quando muitos escravos se recusavam a sacrificar os porcos para que servissem de alimento. Só faziam após ameaçados por castigos severos. E a recusa vinha de costumes africanos, onde crenças ancestrais diziam que o espírito do animal morto permaneceria no corpo daquele que o abatesse, pelo resto da vida, alterando o seu comportamento. Também se somava a isso, como agravante, o choro do porco que remete a um ruído semelhante a um lamento humano. No sentido atual, se refere a quem age de forma desagradável e irritante, sem levar em consideração as demais pessoas.

 

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