A teatralização do mundo: da ética à estética
 



A teatralização do mundo: da ética à estética

por Maria Tereza Jorgens Bertoldi

“Entramos numa era em que as certezas desmoronam” (Edgar Morin)

A pós-modernidade assiste a eclipse de um valor moral: a ética que atravessou todas as civilizações como vetor da conduta humana aceitando reconhecer as múltiplas formas culturais, as ideologias e as ideias recorrentes de uma moral universal com códigos específicos – para emergir numa configuração social - que para o sociólogo francês Émile Durkhein, tanto nos indivíduos quanto nas sociedades o desenvolvimento exagerado das faculdades estéticas é um grave sintoma do ponto de vista da moralidade. A ética parece pouco pensada para a teatralização de um mundo cujos modos alternativos de vida estão a afirmar a saturação de aspectos edificantes. Pode parecer frívolo falarem estética como história da arte. Por acaso, não sabemos que a era de Michelangelo, Rafael, da Vinci já passou há muito tempo e que as magníficas alegorias da Idade Média atravessam o grande deserto de homens que buscam extrair do eterno o transitório?

Charles Baudelaire define esse elemento transitório de prazer fugidio, de um princípio vital onde escapa o imutável e o eterno da alma para realçar o corpo construído para ser teatralizado ao máximo. Isto pode ser irritante, por demais racionalistas, mas a efervescência contemporânea, inclusive nos seus aspectos mais chocantes é uma realidade indiscutível. Assim, a estética do belo reverenciado por Baudelaire, pela infeliz coincidência de várias causas, sucumbiu às entranhas da arte pura derrotada pelos comediantes do espetáculo da pós-modernidade. Desse modo, a estética marginalizada pode por medida evolutiva de um movimento tribal produzir uma ética inquietante, característica das histórias humanas em oscilações cíclicas que demarcam a civilização dos costumes. Resta religar a ética à estética para compreender o fim de um mundo e o nascimento de outro. No âmbito desta análise pode-se compreender a estética como faculdade de um sentimento não menos belo, o de sentir em comum. O desenvolvimento das seitas e de todas as formas de sucesso nas manifestações coletivas, políticas ou ideológicas, não resultam somente do desenvolvimento tecnológico ou dos frutos do charlatanismo fanatizante, mas de uma obsessão que estimula a atmosfera afetiva, de uma capacidade de agregação, de espaço compartilhado que se alastra como forma de um novo esboço social e que remetem à interatividade, à teoria da comunicação.

Todas as formas de comunicação resultante dos fluxos, dos contatos induzidos pelo espaço partilhado moveu a pós-modernidade a uma revolução cultural que gerou novas formas de socialidade, como ressurgimento de emoções transitórias teatralizadas onde todos os excessos são permitidos desde que as regras sejam abolidas. Arte sem sonho, destinada ao povo como espetáculo que só varia na aparência. Atrofia da imaginação reduzida a mecanismo como um equivalente estético da dominação. Fantasia romântica que sepultou a força criadora do estilo purista para constituir um novo estilo, uma estética renascente onde os valores são aparentemente aceitos para que possam ser mais facilmente distorcidos. Vale insistir um pouco mais sobre a estreita conexão entre ética e estética, diz Maffesoli, para quem ser mais preciso é denominar a ética uma moral sem obrigação, nem sanção.

Uma vez excluídas as sanções, o corpo coletivo promove a orgia orquestrada e vence o obstáculo do formalismo enfrentado pela estética da arte. Isto sem evitar o dogmatismo moralizador e o puritanismo da arte burguesa subordinado, então, pela idolatria do espetáculo. O triunfo sobre o belo é levado a cabo pelo humor, as paixões coletivas, configuradas como metáforas dionisíacas. Em Michel Maffesoli, referindo-se à prostituição como um serviço divino, ligado de resto às belas artes porque remete também a uma origem religiosa das antigas civilizações, vista como um sacramento litúrgico que torna visível a graça e a virtude do estar junto, o sair de si e diluir-se em algo mais amplo vencendo as resistências do corpo, a arte da conjunção se explica por si só.

A ética e a estética, numa análise sociológica renovada e pluralista, está a serviço de uma nova ordem moral dos valores aceitos ou dissimulados. Quando uma forma está saturada, outra que estava oculta reaparece e ocupa o centro dos holofotes num jogo lúdico feito de excitação e repetição banal, uma encenação da vida coletiva teatral que libera os instintos e onde tudo pode acontecer. Pode-se dizer que esta teatralidade restaura a socialidade de base esquecida pela atomização, e o corpo coletivo tem uma função ética de sair de si, romper a clausura do corpo individual para participar da embriaguez coletiva que garante o equilíbrio da socialidade. Maffesoli, sem resistências formais, desnuda o moralismo intelectual sem romper nenhuma tendência e denuncia de maneira curiosa à modernidade, onde prevaleceu o fruto proibido das sanções e dos prazeres eróticos. Na pós-modernidade, por uma espécie de êxtase social, é significativa a perda do ego moderno ligado à sua identidade induzido, então, ao espetáculo de um mundo essencialmente epifanizado, celebrado por si mesmo.

O diabólico do prazer é a caricatura da solidariedade. O prazer, contudo, é rigoroso: cada espetáculo vem mais uma vez demonstrar de maneira inequívoca a renúncia que a civilização impõe às pessoas, diz Baudelaire. Mas ele era tão sem humor que na falsa sociedade, o riso o atacou como uma doença. Basta recordar que As Flores do Mal (1857) tinha por título As lésbicas. O objetivo era ressaltar que podia existir no coração de uma civilização produtivista uma sensualidade estética sem finalidade. E é bem isso que parece estar acontecendo. A moda, o hedonismo, o culto do corpo e a prevalência da imagem são formas de agregação societal. É o que podemos, igualmente, chamar de estética da recepção. Enfim, formado o espetáculo como ponto de ancoragem tudo contribui para um apocalipse que fragiliza nossas certezas e põe em xeque o eterno devorado pelo transitório, sem finalidade lógica. Nisso reside todo o segredo da estética. A teatralidade coletiva, tornada banal, rege as relações sociais, os sentimentos, as ações, as paixões, a força agregativa que perdeu numa cultura alternativa a ética moralista. A arte de viver fundada já não mais na busca da liberdade absoluta, mas nas pequenas liberdades vividas no dia-a-dia. Esse sentimento artístico não é a expressão de um jogo mundano ou o resultado das noites de álcool, do hedonismo ardente, da avidez que se deixa viver, mas é um sentimento bem arraigado, segundo Maffesoli.

Tudo isso é a causa e efeito de uma ética do instante, tão fugaz que se esgota no mesmo ato. Relembrando, ainda, Baudelaire e o seu argumento de uma estética sem finalidade como exemplo na contramão da postura distintiva da modernidade, resume-nos esse fervilhar do espetáculo como a fusão grupal que domina a era da estética: uma cultura plástica, sensual, hedonista a serviço da pós-modernidade. O burguesismo com as características que acabamos de ver tem por valor último o indivíduo e suas particularidades. Em contrapartida, a cultura alternativa é uma cultura de grupo (cultura de sentimentos) totalmente amoral, baseada no prazer e no desejo de estar junto sem finalidade específica. E isso chamamos de ética da estética. O vertiginoso avanço da ciência e da tecnologia foi responsável, na modernidade, por uma revolução sem precedentes na forma de vida da humanidade.

O mundo deu um giro de 360º e caiu na pós-modernidade esmagando a ética moralista e a estética da arte. Aviltadas pela efervescência dos costumes, pela invasão dos movimentos radicais dos anos 60, o século XX expandiu infinitamente a gama da sexualidade. A era dos ismos parecia desafiar as teorias de Freud: homossexualismo, heterossexualismo, metrossexualismo, feminismo, hedonismo, lesbianismo, liberalismo gay, instalando-se sem reservas no enfrentamento a uma socialidade ainda desorientada na pós-modernidade, a aceitar uma estética de pluralidade sexual.

Os valores éticos até então dignificantes passaram a permanecer ocultos à atenção da crítica. A derrocada da estética da arte, a arte sem sonhos, esmagada pela fatalidade das decadências passou a ser subestimada, já não mais vista na concepção purista de Baudelaire, mas manifesta na razão inversa desta concepção. E assistimos então a obsessão do estar-junto. Maffesoli nos provoca a repensar estes novos tempos: a ciência não erradicou o câncer, mas viu nascer a AIDS e expandiu a cirurgia plástica. A beleza e o uso do corpo tornaram-se os holofotes das passarelas incrementadas a silicone. Medicamentos alternativos devolveram ao homem o vigor transitório para sustentar o delírio do estar-junto. A música ensurdecedora agregou multidões, submissas a um poder coletivo marcado pela banalidade que não se esgota. O cinema, o teatro, a literatura (pobres artes!) fazem do trágico o espetáculo teatral da orgia confinado à sexualidade perversa que busca o consumo sem nada a oferecer de arte ou de estética. A Gioconda de Da Vinci, inspirada em amores extraconjugais seria hoje o corpo estético das top-models exibindo a nudez para celebrar o ritual da arte e ganhar os aplausos da periferia. De qualquer modo, a provocação de Maffesoli foi curiosa e proveitosa para um repensar sem sanções.

Enfim, tudo me leva a concluir que já vi muito, assisti muito, conheci muito, devorei leituras, mas não esgotei os segredos e os mistérios da conjunção. A pós-modernidade também cederá lugar a uma nova socialidade, isto é certo. Quem sabe, o estar-junto sem cobranças, sem contestações renegue o moralismo intelectual e por consequência a estigmatização da estética. O casamento tão desprezado há alguns anos dá sinal evidente de mudança: bolo de noiva, véu e grinalda já começaram a riscar um novo esboço na socialidade nascente. Quando o mundo virar a cabeça outra vez e girar outros 360º, poderemos ser os novos hiper-espectadores.

 

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