O papel curador da arte na sociedade pós-moderna - parte I
 



O papel curador da arte na sociedade pós-moderna - parte I

por Rafael Figueiredo

“A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos Abscessos, tumores, nódulos, pedras… São palavras calcificadas, poemas sem vazão. Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado, prisão de ventre… Poderiam um dia ter sido poema, mas não… Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa”

Poema Preso – Viviane Mosé


Somos animais pensantes, mas, acima de tudo, somos animais que sabem que pensam; a própria consciência de ter consciência é um abismo entre o natural e o pensamento. Ao percebermos a morte, também percebemos a vida, e isto se desenvolve de forma desordenada em nós. Toda essa carga subjetiva se mistura ao conhecimento empírico do mundo e à sua velocidade de trabalho. Assim, seguimos acumulando afetos, paixões, sonhos, angústias, tristezas, os quais ficam em algum lugar do nosso silêncio, escondidos em couraças de comportamento.

O que nos habita também nos habitua, e é parcialmente desconhecido. Podemos talvez intuir ou projetar aquilo que nos angustia de alguma forma, porém, nossas camadas de proteção e os limites sociais impõem ao silêncio essas fissuras. Mas a partir da linguagem, com seus signos e significados, esses afetos irão se transportar para o mundo. E aí entra a poesia. A poesia não é apenas um gênero literário, mas um “lugar” onde despejamos nossos silenciosos barulhos diários, mesmo que incógnitos. Ao fazê-lo, damos forma a tudo isso, e perdemos a indefinição, seguindo para a objetivação daquilo que sentimos; após, tudo se modifica.

Ademais, seria possível dizer, sem nos aprofundarmos no campo largo da filosofia, que o poema, tal qualquer outra expressão artística, é uma transgressão das leis naturais e morais. Um lugar onde não há limite imposto pela forma ou convicção. Nesse local estamos livres no campo infinito das ideias sem formato. Escrever um poema, mais do que uma questão estética, implica lidar com nossos silêncios e nossas angústias, nossa ordenada desordem, trazendo algum equilíbrio às vidas cotidianas. Por isso, acredito que a arte como um todo exerce um papel de curadoria humana, ou seja, pertence a ela a responsabilidade de elaborar essas linguagens, de modo a não servir apenas para ser apreciada, mas produzida por todos, sem distinção estética em um primeiro momento, tornando essa expressão um ponto de encontro comum, onde podemos nos reconhecer no outro e em nós mesmos.

Um aspecto interessante da construção do poema como linguagem para nossos afetos silenciados é que, com o passar do tempo, as palavras foram sendo apropriadas ao que chamo de “sentido de uso”, ou “palavra acostumada”, como diria Manoel de Barros. Isto é, em benefício da construção organizada da comunicação, as palavras deixaram seu campo de origem, resumindo-se a apenas um signo objetivo e mediano para a comunicação. Nossas paixões e nossos sentimentos foram sendo condicionados a esse uso racional da palavra, tomando o formato para si e endurecendo ao longo do tempo. Não é incomum percebermos que expressões afetivas ditas cotidianamente como um reflexo comportamental caíram em um limbo sem significado, transformando-se somente em coisas ditas, e não mais em códigos subjetivos para o acesso de afetos mais profundos. É preciso reinventar as palavras, ou, mais do que isso, é preciso reinventar e rever os nossos sentidos, reeducando a escuta e a linguagem.

Façamos, agora, uma curva de volta à poesia, vista como linguagem de afetos. Se pensarmos sobre a velocidade do nosso tempo e suas demandas sempre tão urgentes, é compreensível que, de alguma forma, estejamos nos distanciando dos significados profundos na medida em que nos aproximamos da busca pelo alívio imediato de nosso sofrimento e nos acostumamos com ele. Assim nos omitimos, também, do processo enriquecedor da busca pela saída desse mesmo sofrimento. Logo, perdemos a linguagem poética como meio de expressão de nossos afetos e nos entregamos a uma procura descompassada pela identidade e por sua afirmação. A superficialidade talvez se torne a marca do nosso tempo, ou não, mas é notório o distanciamento de nós mesmos dentro de tantas urgências e demandas. Isso tem projetado uma sociedade que pouco sente qualquer coisa capaz de durar mais do que alguns instantes. É nesse campo que o poema retoma o seu sentido original, criando uma espécie de “tempo alheio”, no qual irá se afirmar como intensidade e expansão, libertando os afetos de suas matrizes pré-determinadas.

Para finalizar este ponto, gostaria de lembrar de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta Fernando Pessoa, que diz: “Pensar é estar doente dos olhos”. E apesar de ser uma frase bastante objetiva, não tomemos essa expressão como máxima – melhor é que não tomemos nenhuma, inclusive. Mas vamos imaginar que escrever poesia seja não pensar de forma convencional, e sim abrir espaço para um pensamento natural de fluxo indefinido e sem contornos, configurando em ação a expressão da própria poesia. O que nos conduziria não apenas ao melhor entendimento de nós e do que nos rodeia, mas também ao encontro de uma comunhão com nossa natureza primitiva, nos libertando e expandindo nesse pequeno espaço chamado poema.

 

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