Veraneio
 



Contos

Veraneio

Vitória Zaj


Não comi uma única espiga de milho. Serei justa, as coisas já não iam tão bem há algum tempo. Porém, se tornaram uma montanha-russa que só desabava no verão de 2017. Uma simples iniciativa de ir para praia se tornou um tormento, uma refeição pesada e gordurosa, difícil de digerir. Assim como as maiores catástrofes, a ideia de início parecia brilhante e inabalável, tinha cheirinho de liberdade e de milho verde na manteiga.

Meu passeio pela tal montanha-russa começou no dia de minha formatura na faculdade. Meu pai me cedeu seu fusca de livre e obrigada vontade para uma viagem para o balneário isolado de Rei do Peixe. Amarelo, enferrujado e dono de uma tosse crônica, o fusca era a definição da falta de segurança para uma ida à praia. Só não era mais explícito porque não tinha a palavra problema escrita no capô.

É óbvio, a ideia foi desaprovada pela minha família, pela gente de meu namorado e pelos meus sensatos colegas de curso. Todavia, teimosia é minha característica; não, sensatez. Eu tinha nos nervos ainda o trabalho de conclusão, e tudo o que eu queria era evitar evidências comprovadas cientificamente. Portanto, segui com o plano.

Pedi para meu tio, barbeiro de excelência, fazer os reparos no automóvel. Afinal, estava sem um pila no bolso e sempre fui adepta do faça você mesmo. Bom, a tosse em meu fusquinha acabou e se tornou um rouco catarrento. Para não falarem que eu não era caprichosa, pintei a carcaça do fusca, por cima das ferrugens mesmo. A aparência? Um bolo com glacê derretido e a cor, bom, parecia vômito. Sucesso. Despercebida eu não iria passar. Planejei o veraneio em um dia, iríamos dia quinze e ficaríamos com a casa de minha avó por duas adoráveis semanas.

Devo deixar claro que meu consagrado era um ícone em minha família, ao passo que eu era apenas a megera. Entronado, mimado e adorado por toda minha parentada, ele era o suprassumo da gentileza. Até o fusca, meu pai queria lhe dar e para mim apenas um parabéns. A casa minha avó só emprestou porque o riquinho também queria. Então se o mimoso quer, tá certo Ariela, vá também.

O vagão então começou a subir montanha acima, tudo apontando para "Vai dar ruim, D. Ariela". Ignorei como fazia sempre que um problema começava a se criar bem na minha frente. Segui primorosa em minha teimosia e fiz as malas, as coloquei no fusquinha cinco dias antes de seguir para a formosa RS 040. No dia da empreitada, revisei para ver se estava tudo certo. Perguntei ao meu eleito se ele já tinha organizado todas suas tralhas e ele prontamente disse sim.

Seguimos, após mil recomendações, para a estrada do mar. Após ultrapassar, veja bem, o pedágio, pagar o pedágio, recolher todas as moedas para o pedágio, facilitar o troco no pedágio, destruir a catraca do pedágio porque meu fusca é doido, a beleza de amor de minha vida lembra que esqueceu das suas malas. Me senti humilhada. Voltamos, ele com a cara caída de vergonha, eu a própria definição de cabra emputecida e o fusca mais rouco que nunca.

Depois de passar de novo pelo pedágio, entre as risadinhas dos brigadianos, prosseguimos rumo ao litoral. Tentei ligar o rádio, porém notei que isso fora uma das coisas negligenciados por meu tio. Eu e meu mimoso, permanecemos então em total silêncio, eu com estômago duro de fome e raiva. Ao chegarmos próximo ao Túnel Verde, fomos dragados por um engarrafamento. Os tios das bancas de moranga achavam graça em meu fusca derretido, apontavam jocosos em nossa direção. Me senti uma celebridade em meio ao caos. Chegamos à praia lá pelo meio-dia, sendo que nosso objetivo inicial era chegar às oito e meia.

Apenas uma olhada para o pátio da casa da minha avó fora o suficiente para eu notar o quão encrencada eu estava. Senti o vagão deslanchar montanha-russa abaixo e eu ainda acelerei. O que era uma promessa de duas boas semanas com uma casa em uma praia remota apenas para mim e para o riquinho, havia se transformado em uma reunião sem critério algum. Vi minha avó ali, vizinhos de Viamão, irmãos de minha madrinha e o mecânico de meu avô com toda a sua família. Era o pandemônio e eles não pareciam estar ali apenas para uma recepção, havia cadeira, brinquedo e roupa no varal.

Entrei no pátio com um sorriso mais amarelo que meu fusca. Tentei fingir que já esperava por todos ali presentes. Cumprimentei toda a gente, expliquei quem eu era para alguns e lancei olhares compadecidos aos que pareciam tão confusos quanto eu. Vi a melhor amiga da minha avó, uma senhora atarracada de bobs na cabeça, passar enfurecida por nós com um prato cheio de farofa e ossos de galinha.

- Não para de chegar gente nesta bosta? - chiou a mulher.

Almoçamos o que minha avó permitiu, afinal ela já havia feito toda a comida e não queria que sobrasse. Comemos arroz com restos de galinha de padaria. Após a refeição tive de cuidar dos filhos do mecânico de minha avó. Chegou a noite e eu não vi nem o cheiro do mar. Dormi na garagem e por sugestão do mecânico, meu consagrado dormiu no fusca.

O dia seguinte era só ladeira abaixo, minha avó nos proibiu de ir à praia antes do almoço. Alegou que o mar estava bravo ou que tinha água-viva. Toda hora mudava de desculpa e a cada meia hora arranjava algum serviço para meu eleito fazer. Chegou a tarde e foi combinado que todos iríamos ao chá da igreja. Chegando lá minha avó e sua amiga falaram que eu não poderia comer os doces, afinal tinha que cuidar da aparência. Mais uma vez chegou a noite e nada do mar, nada de milho e nada de amassos. Jantamos mais uma vez galinha de padaria e tive de brigar por uma tomada com uma criança de oito anos de idade.

As duas semanas se arrastaram como os primeiros dias. Consegui ir para praia, mas sempre por pouco tempo, minha avó sempre aparecia com a criançada e mais suas amigas. Nos forçava a fazer caminhadas pela avenida e cuidar das crianças enquanto elas experimentavam lenços e bijuterias. Além do fator inesperado das visitas e minha avó, mais um ponto negativo se desenhou em minhas férias. Rei do Peixe não tinha bancas de petiscos típicos de praia. O resultado era nada de milho, nada de caipirinha e nada de capeta. Apenas galinha assada de padaria com polentas cheias de graxa, acompanhadas de suco de saquinho.

Eu me sentia constantemente virada em um pinscher. Por outro lado, meu consagrado parecia total e completamente alheio a tal situação. Passava as tardes jogando conversa fora com o mecânico ou jogando no celular com os amigos do serviço. Eu já não fazia questão de conversar com o namorado. Meu dia girava, então, em ralas idas à praia e interrupções longas demais, com uma dieta rica em farinha e graxa de padaria.
Em nosso último dia na casa de Rei do Peixe, decidi que quebraria o gelo com meu eleito o levando até a lagoa de Quintão, passeio tradicional de minha infância. Arrumei as malas no carro, as minhas e as dele, e dei uma desculpa qualquer para justificar nossa saída logo cedo. Fiz um café rápido e depois de uma despedida um tanto longa, nós rumávamos a tal lagoa. Óbvio que minha memória me traiu, dei voltas e mais voltas no centrinho e nada de achar o tal do estradão que levava à lagoa.

Único ponto a favor da sorte em meu verão, foi eu ter encontrado um antigo colega de classe arrastando seus chinelos na avenida principal. Usando seu picolé como seta, apontou para a rua que deveria seguir. Comecei então a reconhecer o caminho, fui apontando certas casas que formaram o cenário de minha infância. Como um quebra-cabeça, fui montando cenas em minha mente, as brigas com meus primos, as correrias e as idas à praia. Eu ia faceira e cheia dos comentários, meu namorado por sua vez tinha os olhos fixos no celular.

As casas então começaram a rarear, tudo era capim e muito próximo ao que era quando eu tinha dez anos de idade. A estrada era pontuada por buracos e quando eu já sentia a proximidade com a lagoa, poças d`água de tamanho expressivo apareciam pelo caminho. Numa dessas, como que para assinar o fracasso de todos os meus planos de verão, uma poça de tamanho superior as demais apareceu a poucos metros da entrada da lagoa. Meu consagradíssimo pressentindo problemas, desviou o olhar de sua tela e observou o espelho plácido.

- Será que não é funda? - perguntou ele com a voz molenga.

- Funda nada - falei e acelerei.

Foi quando o carro de minha montanha-russa saiu dos trilhos. Afundei o fusca na poça d`água. Grito para meu bonito não abrir a porta do carro, ele abre. Afundamos mais ainda. Passamos o dia parados naquele deserto, servindo de entretenimento para todos que ali passaram. Fiquei ignorante de raiva e fome. Xinguei quem perguntava sobre a proeza, ignorei o namorado. Não atendi os telefonemas. Quando chegamos em Porto Alegre, de guincho, acabei o namoro. Bom, as coisas já não iam bem fazia um tempo.


Vitória Zaj é designer de moda e artista, mas há dez anos desenvolve sua escrita autoral se arriscando nos campos do terror e da fantasia. Natural de Viamão/RS, escreve histórias que trazem personagens femininas em universos caóticos, situações cotidianas em contraste com devaneios e a constante luta pela igualdade de gêneros, raças e orientações sexuais. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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