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Veronica Favato


Mais um semestre na faculdade de Direito de Cesarolândia. Eu ensinava Criminologia e Direito Penal, mas quem penava era eu, com uma turma que só queria um diploma na parede. Afinal, quem não gostaria de ser chamado de "doutor"? Bastava passear nos bares da faculdade durante cinco anos. Fatoriais, claro. Qualquer faculdade Unidunitê, com suaves mensalidades, proporcionaria esta promessa de sucesso.

Comecei neste emprego por indicação, uma colega minha do doutorado virou coordenadora, inaugurando o curso na cidadezinha. Eu não conseguia lecionar nas principais universidades na cidade grande, havia uma entropia de cadeiras reservadas antes mesmo de qualquer concurso. Decidi me mudar, quem sabe assim eu poderia fazer a diferença, criar pensadores, mesmo que começando devagar.

Na primeira aula comecei a ensinar sobre Jürgen Habermas:

"Não é a relação de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo que pode ser representada e manipulada, mas a relação intersubjetiva, que sujeitos que falam e atuam assumem quando buscam o entendimento entre si."

Os alunos me olhavam, uns com a cabeça inclinada, outros de olhos arregalados. Um rapaz do fundo roncava, com a cabeça entre os braços, babando em cima de um Resumo de Direito.

Na segunda aula decidi explicar melhor a "ética da discussão": em vez de um sujeito fazer uma lei universal, era preciso buscar debates e discussões, que chegassem a acordos. O entendimento pode ser a base ética de uma sociedade. Ainda havia expressões de espanto entre os alunos.

Na terceira aula, expliquei o que era sujeito. Quando comecei a falar sobre Ética, ouvi um estrondo na porta dos fundos. Blam! O som reverberou sobre as carteiras da sala, acordando o rapaz do fundão. Um policial de farda marrom, com cassetete e pistola no cinturão, entrou na sala. Arrastando uma cadeira, sentou-se no meio. Suspirei.

- Por favor, como é o nome do senhor?

- Cabo Antunes - ele respondeu, inclinando-se para trás, com os cotovelos abertos e as mãos atrás da cabeça.

- Não são permitidas armas dentro de sala de aula, senhor Antunes - afirmei, aproximando-me.

- Mas ô sô otoridade, Excelência - disse, mostrando os dentes.

- O senhor pode até ser autoridade lá fora. Mas aqui na sala de aula, a autoridade sou eu - disse com a voz firme, mas minhas pernas tremiam.

Ele sacou a arma do cinturão, alguns alunos já estavam debaixo das carteiras. Colocou as mãos para cima.

- Positivo e operante, Excelência. Vô pô a arma nu chão e chutá pro lado. A sinhora deseja fazer uma operação pente fino?

Abaixei-me para pegar a arma, com um lenço. Silêncio na sala. Coloquei-a na gaveta da minha mesa.

- Pessoal, vamos estudar sobre o Estatuto do Desarmamento? Será um bom tema para a aula de hoje. Que tal um debate sobre este tema?

Os alunos aplaudiram, aliviados. Eu fazia perguntas e eles levantavam as mãos para participar. Ficaram empolgados com a prática do Direito, seus olhos brilhavam. O estudante do fundão até leu uma parte do Código Penal.

No final do horário, os alunos saíram. Só ficou o policial, que se levantou. As paredes da sala se encolheram, o teto se abaixou. Eu suava frio pelas mãos, ele queria a arma de volta.

Ele pediu desculpas, dizendo que estava sob muita pressão no trabalho.

- Eu num entendi muita coisa da aula, por onde é que eu começo? - Encolheu os ombros, olhando para baixo.

Comecei emprestando um livro de Português e Gramática, revisando seus escritos, que melhoraram muito. Depois, indiquei livros sobre noções básicas de Direito. No final da faculdade, estávamos discutindo Habermas.


Veronica Favato mora em São Paulo, mas é natural do Rio de Janeiro. É arquiteta, economista e professora universitária. Trabalhou como revisora de livros técnicos para diversas editoras. Atualmente participa do Curso Metamorfose para Formação de Escritores e de suas oficinas, tendo estudado com grandes mestres: Luísa Aranha, Marcelo Spalding, Rubem Penz, Márcia Ivana, Bruna Agra Tessuto, Duda Falcão entre outros. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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