Gabarito
 



Contos

Gabarito

Ney Porto Alegre


"Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve."
Belchior

O ônibus verde e branco da VAP aponta preguiçoso no horizonte. Antes havia passado um T4. Apesar de ser sábado, trazia mais passageiros do que assentos. É que nesses dias o número de viagens é reduzido e o acúmulo de pessoas nas paradas é um indicativo se a condução passou faz pouco ou está próxima de passar.

Eu poderia ter pego o bus na Protásio Alves, mas sempre preferi descer a vila. Toda a Barão de Bagé, depois pegar a Galileia e me dirigir à parada onde hoje é a Rótula da Nilo Peçanha. A Avenida Circular, uma das poucas na Vila Jardim que não era de chão batido.

Antes mesmo de chegar ao ponto de ônibus, ainda na Barão, cruzei em frente a um condomínio residencial construído onde existia uma pequena favela. Todos os moradores foram removidos para um local denominado Barro Vermelho, nos confins da Restinga. Junto a eles foi uma menina que ouso chamar de meu primeiro amor, mesmo que não tenhamos passado de um furtivo encontro na praça defronte ao colégio Mallet, hoje fechado.

No início a Restinga se constituiu em um bando de gente pobre que a exploração habitacional ia empurrando o mais distante possível e a sociedade os abandonava a própria sorte, com um mínimo de infraestrutura. Os mesmos barracos, das antigas vilas, eram desmontados e depois reconstruídos. E nesse desmancha e refaz, tomavam um aspecto ainda pior. Até os dias de hoje esse local recebe a alcunha de Restinga Velha. Bem mais tarde surgiu a Restinga Nova. Distante igual. Aos pobres, igual, mas já com residências de alvenaria, terrenos bem demarcados e alguma infraestrutura.

O ônibus, que se aproximara preguiçoso ao sol de quase dezembro, seguiu sonolento seu trajeto rumo ao centro da cidade. Meus pais me davam, vez ou outra, dinheiro para mais uma condução, do centro ao Parobé, mas esse dinheiro eu baixava e fazia o trajeto caminhando, para não dizer a pé, com medo de ser condenado pela rima.

O ritmo lento dessa viagem me induziu ao sono, mas fui acordado pelos gritos de indignação de alguns passageiros e do cobrador, apesar de que, a alma lesada não esboçou nenhum movimento ou reação. Foi bem em frente à Lancheria do Parque que ele teve os óculos furtados por um menino que, da rua, se aproveitou de sua distração e das janelas abertas. O garoto atravessou a Osvaldo Aranha e entrou no Parque Farroupilha.

Eu sempre fui um aluno relapso e tímido. Muito tímido. Na minha. Só observando. Tinha medo de perguntar. Sei lá. Vai que o professor questione a minha ignorância? Eu acabei de explicar! Por isso mesmo, vida afora, me acostumei a aprender com os outros. Prestava atenção aos seus questionamentos e aprendia com as suas dúvidas, que não raras vezes, combinavam com as minhas.

Mas retomando a narrativa, naquela tarde em que muitos jovens se dirigiam à Redenção para um show ao ar livre do Nélson Coelho de Castro no bar Luar - "Falta pouco tempo eu sei, mas quando a gente é pequeno, o tempo custa pra passar, também a gente pode crescer" - eu me dirigia à escola para a realização de uma prova.

O fato é que naquele ano a máxima de que o professor faz de conta que ensina e o aluno faz de conta que aprende nunca se fez tão presente. Por vezes, as boas intenções trazem no seu âmago um grande mal. No intuito de moralizar o serviço público, algum babaca fazedor de leis, criou uma que proibia um funcionário público de ocupar dois cargos na administração estadual. Por seu lado, tentando melhorar a qualidade do ensino público, as escolas passaram a cobrar dos alunos uma mensalidade do Círculo de Pais e Mestres, chegando a constranger alunos inadimplentes, entre estes, eu. Resultado? Meio ano de greve dos alunos, a outra metade greve dos professores.

Acontece que o professor de Eletrotécnica, trabalhador assim como eu da CEEE, furou a greve dos mestres e seguiu na labuta, mesmo sem salário. Ele se furtou à efetiva ação de ministrar as aulas, e eu, a de estudar. Para a realização dessa sabatina, crucial para minha aprovação, ele pediu a leitura de 30 páginas do Martignoni, o que, obviamente não fiz.

Naquele tempo, a média era sete, o que eu considero uma cobrança elevada, e o ano letivo, dividido em 4 bimestres. Somando 28 pontos estava aprovado. Eu vinha em uma descendente: 9, 8, 6 e sabe lá, um zero! Não tinha feito nenhum dos trabalhos propostos, metade da nota, e não sabia nada do assunto da prova.

Cheguei cedo e quase me aventurei a ler as ininteligíveis páginas de eletricidade na meia hora disponível. Desisti. Sentou-se ao meu lado um colega que, na real, nem era das minhas trincas e lhe relatei meu drama. Fiquei surpreso quando ele, abrindo o zíper de sua pasta de couro, puxou uma prova aplicada pela manhã, em outra turma de igual nível, pelo mesmo professor.

As questões eram de V ou F e quem a fez tirou 8. Bastava inverter as duas respostas erradas e lá estava eu, com o gabarito para um 10. Mas não forcei tanto a natureza. Errei uma para despistar. O professor avisou que quem aguardasse todos entregarem, receberia sua sabatina corrigida e a nota do bimestre. Não esperei.

Fui até um bar, localizado na esquina das ruas Espírito Santo e Washington Luiz e resolvi me entorpecer bebendo vinho. Tornei à escola e fiquei bebericando junto à quadra de esportes. Quando os colegas saíram um se aproximou de mim e enunciou a fala do professor:

- Poxa! O Ney é bom mesmo! Quase nunca vem à aula, não fez nenhum trabalho e por pouco não tirou um 10!

O mundo precisa de boas almas, mas algumas devem se perder, pelo bem da diversidade humana.


Ney Porto Alegre participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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