Bicho-Papão
 



Contos

Bicho-Papão

Annie Pedersen




O barulho vinha do armário. Eram três batidas ocas: uma curta e duas longas. A sequência seguiu por mais quatro vezes, sendo que, na última, Carina arregalou os olhos. Ela apalpou a parede à procura do interruptor de luz. Não funcionou. Colocou suas pernas para fora da cama e tocou o chão com a ponta dos pés. Levantou-se vagarosamente e, com os braços estendidos e chutando alguns brinquedos espalhados pelo chão, cruzou o quarto. O barulho se repetiu pela quinta vez. Com as duas mãos bem firmes, uma em cada maçaneta, ela abriu a porta do armário de uma vez só.
Ouvem-se berros.
- Quem é você? – perguntou Carina com a respiração ofegante.
- Eu...eu...eu sou o bicho-papão. – Apesar da escuridão, o luar que entrava pela janela clareou parcialmente o rosto da criatura.
- Como assim bicho-papão? Isso é alguma piada? Saia já do meu armário!
- Seu armário? – a criatura franziu a testa. – Este quarto não é do Daniel?
- Daniel? Claro que não! Este quarto é meu!
- Você tem certeza disso? – A criatura tirou uma lanterna da prateleira e fez um gesto circular com a mão. Carina olhou ao redor.
- Meu Deus! – ela tapou a boca com as mãos. – Como é que eu vim parar aqui? Tenho certeza de que fui dormir no meu quarto.
A criatura levantou o dedo indicador e falou para que ela aguardasse um instante. Tirou um celular do meio de seu pelo felpudo e fez uma ligação. Carina cruzou os braços.
- Alô. É da administração? Eu gostaria de reportar um código amarelo aqui. Quais são as providências que eu devo tomar? Aham...aham...tá bom.
- E aí? – perguntou Carina, ainda de braços cruzados.
- Bom, você terá que conversar com nosso supervisor para maiores explicações.
- Que supervisor? Ficou maluco?
- Por favor – insistiu a criatura. – Vá até a administração e fale com o supervisor. Infelizmente, eu não posso lhe passar maiores informações no momento. É só sair aqui pela porta do quarto, virar à direita, descer o corredor e depois virar novamente na segunda à esquerda.
Carina deu de ombros e saiu do quarto em passos largos.

Na placa desgastada da porta, lia-se ADMINISTRAÇÃO em letras vermelhas garrafais. Ela entrou sem bater.
- Olá! – disse um rapaz de cabelos curtos e encaracolados . – Você deve ser a Carina. Ele tirou o pé da escrivaninha e foi em direção à menina.
- Sim, sou eu mesma. E você? Quem é? O que tá acontecendo aqui? Por que acordei no quarto do meu irmão? E que criatura era aquela no armário?
- Calma, calma. Vou lhe explicar tudo. Sente-se, por favor. – Ele puxa a cadeira para ela. – Meu nome é Morfeu e você não está na sua casa. Quero dizer, não na sua casa de verdade.
Ela franziu a testa.
- Parece estranho, eu sei, mas, na verdade...como posso te dizer...você está sonhando.
- Sonhando?
- Sim, sonhando.
- E por que preciso que me falem que estou sonhando? Isso nunca aconteceu antes.
- Porque algo estranho aconteceu com este seu sonho em específico.
- O quê? – suas sobrancelhas se arquearam.
- Bom, eu não sei exatamente o que aconteceu. É a primeira vez que temos um código amarelo. Talvez seja culpa da lua cheia. Coisas estranhas sempre acontecem em noites de lua cheia. – Ele fez uma pausa. O olhar dela continuava fixo no dele. – Melhor eu ir direto ao assunto: você está sonhando, mas está no sonho errado. Na verdade, está no pesadelo errado. Este pesadelo era para ser do Daniel, seu irmão caçula.
- Você tá de gozação com a minha cara. Isso é alguém fazendo alguma piada de mau gosto, não é?
- Veja bem – ele aponta para os monitores espalhados pela sala. – Eu sou o supervisor e daqui consigo monitorar todos os sonhos e pesadelos de todas as pessoas do mundo. Mas, por algum motivo, eu não percebi que você estava no sonho errado.
- Tá. Suponhamos que você esteja certo e que eu realmente esteja no pesadelo do meu irmão. Já que é você quem controla tudo por aqui, me faça voltar pro sonho certo, ora.
- Antes fosse fácil assim. Não sou eu quem decide o que você vai sonhar ou deixar de sonhar. Assim como não é outra pessoa quem decide o que você vai viver ou deixar de viver quando está acordada. Isso depende de cada um. O meu papel aqui é monitorar as coisas para que elas ocorram conforme o previsto e conforme o escolhido por quem sonha o sonho que, até agora, sempre foi o sonho correto.
- Então, seguindo essa sua lógica, fui eu que escolhi estar no sonho do meu irmão?
- De certa forma, sim.
- E por que eu escolheria isso?
- Não sei.
- Hmmm... – Ela colocou a mão no queixo. – Você disse que consegue monitorar o sonho de todas as pessoas do mundo, certo?
- Certo.
- Posso ver meu sonho então?
- Bom, acho que sim. Normalmente não estou autorizado a mostrar os sonhos às pessoas, mas como esse é o seu próprio, acho que podemos abrir uma exceção. Qual seu nome completo?
- Carina Pereira dos Santos.
- Idade?
- Catorze anos.
- Cidade?
- Rio de Janeiro.
- Signo e preferência de sorvete.
- Câncer e morango. Que diferença isso faz?
- Ok, só mais um instante. – Ele digita as informações no computador a sua frente. O sonho de Carina aparece no monitor central.
- Ah! Que canalha! – Suas bochechas ficaram vermelhas.
- Que foi? – perguntou Morfeu, enquanto virava-se para olhar o monitor também.
- Meu namorado! Não tá vendo? Ele tá no cinema com a besta da Rebeca!
- O quarto do seu irmão é perto do seu?
- Um do lado do outro, parede com parede.
- Ah! Então é isso! Você deve ter olhado para esta cena e desejou não sonhá-la. Isso te levou para o sonho mais próximo fisicamente de você, o de seu irmão.
- Me diz uma coisa. – perguntou Carina após alguns instantes. Aquele bicho papão já terminou o expediente?
Morfeu olha para o relógio de pulso. – Daqui a cinco minutos.
- Tá bom, obrigada.
Carina levanta da cadeira num pulo e sai da sala. Ela volta para seu verdadeiro sonho. Só que, desta vez, ela aparece no cinema, de braços dados com uma criatura felpuda.

 

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