Contos
Amor, corte e costura
CÃntia Moscovich
Para Solange Basso de Mattos
Por acaso, só por acaso, Helena tinha esquecido que havia mais coisas no mundo. Os alfinetes e agulhas postos na almofadinha de veludo bordô, linhas em finas garatujas de cores, a fita métrica enrolada sobre si mesma num canto da mesa, o dedal de borco, tudo em ordem, bastando-se na suficiência do mundo que se organizou. A tesoura em estalidos no pano de florezinhas miúdas, isso a única coisa que se mexia. A tesoura e a mão que a empunhava, mão segura e forte, de veias salientes e de juntas grossas. Percebeu-se por primeira vez, naquela tarde, olhando o movimento das lâminas e dos dedos que as guiavam. A estampa mimosa tremia timidamente aos claques da tesoura; como tremia, constatou, não sem certa surpresa e um pouco de desconcerto.
No auge da consciência, a campainha tocou, e era como se a arrancassem daquele lugar de ordenação própria e boa. Havia mais coisas no mundo, portanto, o acaso fora desfeito e tinha de atender ao chamado. A tesoura, largou-a sobre o tecido, as hastes abertas, o brilho do metal em contraste com o florejado de muitas cores sobre o fundo escuro, quase negro. Caminhou sem pressa, arrastando as pantufas de lã, dando-se conta de que as coisas se podiam desorganizar de hora a outra, o perigo que vem desses equilÃbrios delicados e eventuais. Abriu a porta.
A menina teria seis, sete anos, não mais do que isso. Parada, verdadeiramente parada, os pés nuns sapatinhos de fivela, carpins brancos e vestido com peitilho de renda barata. Vinha pela mão de uma senhora de cabelos fantasticamente louros e de boca vermelha, muito vermelha, como uma boneca a que se exageram as feições. Das duas - da mulher, deu-se conta - manava um perfume doce, quase asqueroso. A menina fitava a dona da casa com olhos vivazes e ágeis; tinha um meio sorriso na boca pequena. Helena sentiu uma breve zonzeira, muito breve, como uma ânsia que apenas se insinua. Foi a mulher de pintura escandalosa quem primeiro falou: viera por recomendação de uma amiga, queria fazer uma roupa para a enteada. A menina baixou o olhar, numa timidez repentina. Helena tentou dizer alguma coisa, não costurava para crianças, não mais, mas a voz se trancara, e logo o estrago já estava feito, mais um. Limitou-se, assim, a pedir que entrassem, cedendo passo com o corpo num movimento lerdo e contrafeito.
Estiveram olhando figurinos - L`enfant chic, exemplar usadÃssimo, em primeiro lugar - por um bom quarto de hora, o cheiro doce e ofensivo do perfume alcançando até o mais remoto canto da casa. A mulher folheava as revistas com os dedos de unhas vermelhas como a boca, buscando algum modelo, não sabia bem como, não sabia bem que cor, primeira comunhão da sobrinha, por que era tão difÃcil encontrar algo que servisse a uma criança? A menina sentada no sofá, ao lado da mulher, sem o mÃnimo interesse pela função, olhava ao redor, os pés pequeninos parados no ar. Helena, sentindo uma angústia antiga, teve vontade de sair dali, vontade que se tornou definitiva. Pediu licença, já voltava, gostariam de tomar alguma coisa? A mulher agradeceu, não, não queria; a menina não respondeu nada, limitando-se a amarfanhar entre os dedos a barra do vestido, puxando-a até a altura dos joelhos. Helena foi até a cozinha e trouxe dois copos de suco, sem saber direito para quem se destinava a cortesia. A mulher, entretida com a escolha e em achar tudo muito desgracioso, declinou novamente do oferecimento. A menina pegou o copo com ambas as mãos, numa cautela treinada. Tomou o suco aos goles curtos, tudo, tudinho, e devolveu-o à bandeja, depondo-o sobre o guardanapo de crochê. Levantou-se, assim de inopino, tomando impulso no encosto do sofá. Deu uns dois passos e ficou ali, ao lado da madrasta, parada, verdadeiramente parada, os braços para trás do corpo, as mãos à s costas. Helena colocou-se em alerta, um estado de atenção extraordinária, uma vertigem que lhe vinha da nuca ou das costas, não sabia precisar. A menina ali, acintosamente parada em sua beleza de infância, radiante, plena, completa, a louça da pele e os brilhantes dos olhos. A mulher não prestou maior atenção ao fato.
Mais um quarto de hora, e já uma aragem de fim de tarde bulia as cortinas, fazendo esvoaçar o voal branco. A menina, a essa altura, caminhava pela sala, mexericando nos bibelôs sobre as estantes. Helena não tinha mais interesse na mulher, concentrado-se, tensa e irrequieta, nos movimentos da pequena que, agora, ponta dos pés, tentava alcançar uma boneca de pano no alto de uma prateleira. Antevendo a tragédia, adiantou-se e, numa agilidade que não era sua fazia anos, buscou o brinquedo, esticando-se toda e entregando-o à interessada, maternal e cuidadosamente. A pequena agradeceu e sentou-se no sofá, a boneca sobre suas pernas. Helena aquietou-se na poltrona, porque algum equilÃbrio se havia recomposto.
Finalmente a senhora fechou a Burda com um gesto decidido, suspirou dentro de alguma idéia silenciosa e, sem olhar outra coisa que não um vago ponto na parede, disse vem cá para a menina. Obedecendo a ordem, largou a boneca com displicência, abandonando-a sobre o assento, postando-se em frente à madrasta. A mulher espetou o dedo no ar, o carmesim em voluteios, quero assim, dizia, desenhando o decote no peito de renda, redondo, a senhora entende? Helena concordou com a cabeça. A outra seguia na demonstração, a criança com os braços abertos ao lado do corpo, as mãos pendendo frouxas, deixava-se servir de manequim, dando uma lenta volta em torno de si mesma, permitindo que ali se desenhasse o vestido de mentirinha, o esmalte vermelho pulsando na vista cansada de Helena, mangas fofas, com um corte a cingir-lhe a cintura, arrematado por um tope atrás, apertava-lhe à altura dos rins, sacudia a criança, assim, bem aqui, assim, a senhora entende? Entendia, entendia, já fizera muitos naquele feitio, e tratou de recomendar um tafetá, não muito encorpado, nas Casas Safira deveria haver dos bons, as mangas de organdi e a fita da cintura em cetim, estava bem? Agora, a concórdia; o tecido seria trazido no dia seguinte, combinaram. Antes, porém, tinha de tirar as medidas, esperassem um pouco.
Helena apanhou a fita sobre a mesa depois de levantar-se com dificuldade. Colocou os óculos; de pé, em frente à cliente, depôs-lhe as duas mãos sobre seus ombros, aproximando-a para si. Com sabedoria e com uma espécie de ressentimento, começou a medi-la: enlaçou a menina nos pontos em que devia enlaçar, os gestos um tanto bruscos, a menina girando, obediente, sobre o eixo do próprio corpo, uma boneca de movimentos gentis, graciosa, sempre graciosa. As medidas, anotou-as a lápis numa caderneta de folhas pardacentas.
Ao final, acompanhou-as até a porta, disse-lhes um breve até logo e voltou à mesa de trabalho. Quis continuar do ponto onde parara, mas sentia frio e as mãos se ressentiam. Dobrou a fazenda, guardou a tesoura, organizou retroses, dedal, agulhas e alfinetes e foi preparar a janta. O perfume da mulher, como uma ofensa, ainda pairava doce e enjoado na sala. A boneca de pano ficou, molenga e sem jeito, sentada no sofá.
No dia seguinte, logo cedo, lá vinha o tafetá em cor clara, celeste, e os atavios condizentes. A mulher tinha pressa, ficou parada no umbral, o perfume doce; limitou-se a perguntar quando seria a primeira prova. Helena respondeu que passado o dia seguinte, depois de amanhã, quinta, à primeira hora da tarde. Deu duas voltas na chave, escorou-se contra a porta e trouxe de encosto ao peito o pacote. Ficou ali por algum tempo, como quem espera que algo aconteça, algo que nunca chega a acontecer.
Aboletou-se à mesa e desenhou o molde num papel pardo, recortando-o logo a seguir. Abriu o tecido sobre a superfÃcie de madeira e começou o claque-claque da tesoura, a fita métrica pendurada no pescoço, agulhas e alfinetes na almofadinha de veludo bordô, linhas em finas garatujas de cores, o dedal de borco, os apetrechos dispostos ao alcance da mão. Por acaso, o mundo se reordenava, ainda que periclitantemente, as lâminas vencendo em golpes certeiros o rebrilho da fazenda. A boneca de pano, desconhecendo o instante de frágil harmonia, continuava sentada no sofá.
Na quinta, à s duas da tarde, ou por volta disso, a campainha deu sinal. A agulha voltou à almofadinha de veludo bordô, e, abandonando o dedal sobre a mesa, caminhou sem pressa, arrastando as pantufas de lã. A mulher. A criança. O perfume adocicado, que agora Helena percebia com mais asco. Fez com que entrassem, cedendo passo com o corpo num movimento lerdo e contrafeito. A menina, sob as ordens da madrasta, desvestiu os sapatos e tirou o vestido. Helena percebeu-a em sua nudez cândida e acintosa, a barriga algo saliente, as pernas roliças, o torso de pele suave, os mamilos apenas manchas róseas no peito. Não quis pensar, nem era hora, mas novamente o mundo se desordenava, o equilÃbrio das coisas apenas uma breve experiência já pretérita.
Com vagar - com amor - ajudou a menina a vestir a fazenda cortada, prendendo-a com alfinetes à s costas. Fita métrica ao pescoço, era hora de ajustar o que tinha de ser ajustado. Ajoelhou-se em frente à cliente, ficavam assim da mesma altura, começaria pelo decote, melhor cortar no corpo, a tesoura desenhando a cava, claques escrupulosos rentes à pele muito branca e muito tenra, o tecido cedendo, partido em suas nuanças brilhosas, a carne surgindo, revelando-se lisa e sem ofensa. A menina mexia-se inquieta sem ouvir as reprimendas da madrasta; a costureira não dizia nada porque tinha ciência que não havia volta atrás, por milÃmetros tudo estaria perdido, as perdas sempre desdobramentos sutis do reles e do minúsculo. Apenas os olhos da menina, fixos, pareciam feitos de alguma matéria maleável, neles toda a substância do que se podia recompor. Sentia a respiração morna da criança, uma intimidade reforçada pelos dois rostos que se haviam posto muito próximos um do outro, inadvertidamente próximos, o estranho avizinhar-se de dois seres. Um mal-estar se impunha, devagar, mas abençoado.
Foi quando pareceu ouvir algo rompendo o instante mágico, o encanto se quebrando como um vidro que se estilhaça. Alçou a vista por cima dos ombros da pequena e foi encontrar o rosto de feições marcadas da mulher: está muito comprido, repetiu ela, articulando, com despudor, a boca rubra. Muito comprido, Helena concordou e, espichando um pouco o braço, deu de mão na almofadinha de veludo bordô. Pensou que a barra lhe sairia torta e, erguendo-se a duras penas, pegou a régua de madeira de dentro de uma gaveta. Colocou-se de novo de joelhos e, com a ajuda daquele prumo, ia marcando a barra, a menina girando sobre si mesma, lenta, cheia de poses, trocando o pé de apoio, uma bailarina em cima de uma caixinha de música, lenta, sempre lenta.
Até que aconteceu: um dos alfinetes rascou a pele suave, abrindo uma trilha de vermelho tinto de mácula. A pequena gritou, afastou-se dentro do instinto, a mulher enervou-se, puxando para si a enteada, assentando-a no regaço, pobrezinha, pobrezinha, como isso foi acontecer?
Helena sentia a sala triturada pelas exclamações, as vozes perturbavam-lhe os sentidos, parecia ter caÃdo numa armadilha. Não sabia o que se passava, somente guardara na retina a trilha de fino sangue tinto de mácula, tão fino e tão tinto que seus ouvidos retiniam. Não havia piedade, nem era caso de haver, se houvesse seria só por acaso. O mundo não mais se bastava, a ordem se havia rompido. Percebia-se como se fosse por primeira vez, a cena do passado se recompondo, o barulho dos ferros em atrito, o griteiro e o bolo de gente que vinha sabia-se lá de onde: a menina que tinha junto a si era um ser de pernas compridas e de rosto igual ao seu, apenas isso. Apertou-a com força, com o espanto do auge da consciência; as costelas delicadas da criança entre os braços, o choro de susto apagando-se, entre os dedos uma calidez úmida, viva e aterradora, as costelas cedendo, o tronco cedendo, o mundo cedendo, tudo esboroando-se num conjunto desbeiçado e frouxo, os braços frouxos, as mãos frouxas, a pele de louça em mácula, as pedras dos olhos ocultas pelas pálpebras transparentes de tão brancas, o corpo molenga e sem jeito. Depois, o vácuo. Era como se nada mais houvesse, e nada mais havia de qualquer forma.
Assim, atravessando o amor e seu inferno, apagando-se a última flama, Helena levantou-se com tranqüilidade. Pegou a boneca de pano que ainda estava sentada sobre o sofá. Deu-a à menina, que, em meio a muxoxos ressentidos, fungando sempre, acomodou o brinquedo sobre as pernas, tentando ajeitar o tronco lasso e frouxo; alisava, como numa espécie de carinho doloroso, as tranças de lã presas por duas fitas muito gastas. O sentimento que teve Helena era quase doce, quase bom, mas muito triste; disse, sem nem ao menos se escutar, que voltassem no dia seguinte, o vestido estaria pronto. Tampouco se apercebeu de si quando falou que a menina podia levar a boneca, era um presente que lhe fazia.
Depois de despachá-las, sentou-se à mesa: os alfinetes e agulhas postos na almofadinha de veludo bordô, linhas em finas garatujas de cores, a fita métrica enrolada sobre si mesma num canto da mesa, o dedal de borco, tudo em ordem, bastando-se na suficiência do mundo que se organizou, embora, e agora ela nunca mais esqueceria, houvesse mais coisas, aquelas que moravam no perigo desses equilÃbrios delicados e eventuais.
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