Literatura
Vinho tinto e negras
Sérgio Napp
Todos sabem, o depressivo-sonhador é uma pessoa para quem a cultura tem um valor inestimável. Principalmente a literatura.
Ao ler determinados livros, que, de uma forma ou outra, o deixam empolgados, o depressivo-sonhador entrega-se a um estado de letargia intelectual. Neles encontra o que desejou sem nunca conseguir.
Cita Paul Auster e Ian McEwan, mas poderia citar outros tantos. Autores que atingem a boca do estômago (do depressivo-sonhador, bem entendido) sem demonstrar ser este o objetivo para o qual escrevem. Autores que desnudam o interior dos personagens e de seu entorno e fazem com que, de uma forma ou de outra, nada é o que parece; o simples se torna profundo; o detalhe assume a dimensão que transforma o parágrafo, a página, o capÃtulo, o livro, a vida.
O depressivo-sonhador sente-se pequeno diante da avalanche de emoções que estes autores lhe provocam. Não dorme, não se alimenta, não se satisfaz. Ente perdido no torvelinho de suas incertezas.
Certo, o depressivo-sonhador não encontra ninguém, ao seu redor, com esta força. Isto não o consola. Não é porque outros não atinjam o nirvana que ele se sinta compensado. A não ser o Nobel de literatura o resto é perfumaria, filosofa o depressivo-sonhador em sua assumida modéstia. Saliente-se: o depressivo-sonhador não é um invejoso de carteirinha. Sente inveja, sim, mas uma inveja azul, segundo definição da Ivete Brandalise.
Ao mesmo tempo, paradoxo, o depressivo-sonhador não desiste de investigar as palavras. Agora mesmo foi convidado a participar de uma antologia de contos eróticos. Aceitou. Imediatamente o tema abriu-se diante de seu coração: um indivÃduo que ama vinho tinto e negras, qualquer que seja a ordem. Ambos, negras e vinho tinto, são voluptuosos. Imagina descrever o sentimento intenso deste homem que faz de suas preferências a sua razão. Chegar ao seu âmago. Ao profundo de seu interior. Trazer de lá a chama, o mistério, o paradoxo de suas intenções. A revelação do tema e dos instintos do personagem.
Desiste. Não terá condições de aprofundar-se como seus escritores prediletos o fariam caso o tema lhes fosse proposto.
Escreverá o conto, sem dúvida, altamente erótico como lhe pedem. Será apenas mais uma história e não a história como ele gostaria.
O depressivo-sonhador contenta-se em lamber as bordas enquanto sonha com o recheio.
13/03/2008
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Sérgio Napp
Sergio Napp, nascido em Giruá/RS em 03.07.39, é engenheiro civil, escritor e letrista. Premiado em festivais de música no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, tem mais de cem trabalhos gravados por artistas locais, nacionais e internacionais, sendo autor de um dos clássicos do regionalismo gaúcho, Desgarrados, em parceria com Mário Bárbara. Foi Diretor da Casa de Cultura Mario Quintana entre 1987/1991, 1997/1998 e 2003/2007, tendo coordenado a equipe responsável pela reciclagem do Majestic Hotel em Casa de Cultura Mario Quintana.
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