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Conto

Ruminâncias
Sérgio Napp

Há quanto não nos vemos! Quem sabe me visitas? Meu apartamento é pequeno, mas o suficiente. Nele me exilei. Um que outro móvel e uma rede. Esterilizada a cada quinze dias. A vigilância deve ser eterna.

Se vieres, encontrarás uma sacola na porta. É para a roupa, a tua roupa, toda. Roupas sempre estão contaminadas com ácaros, bactérias, vírus, antavirus, rotavirus e outros espécimes. Não me agradam.

Quero que me encontres como me encontro: despido dos signos que aos homens tanto agradam. Nu em todos os sentidos. Aboli o que não me faz falta. Permaneço em estado de graça e vivo. Não intensamente como antes. Pouco me movimento, quase nada falo, perdi o hábito de escrever. Raramente leio. Muito raramente vou ao cinema. Televisão não tenho. O som está aqui na minha frente implorando que eu o ligue. Internet, desconheço. Dou-me bem comigo mesmo. Supro-me. Faço yoga, medito: rumino cada fato, cada emoção, cada palavra, cada fio de cabelo. Tiro lições. Nada mais preciso a não ser algumas horas de sono, um pouco de qualquer alimento, umas idas ao banheiro. Banho tornou-se opcional. Dois pecadinhos me afligem, entretanto: o pôr do sol e um licor de pitanga. Acontece que da minha janela tenho o mais maravilhoso dos maravilhosos pores do sol. Quanto ao licor, é o vício que me resta. Sei, preciso afastá-lo o quanto antes. Difícil.

O problema está na solidão das pessoas. Como sabes, nunca fui de fazer amizades, mas sempre me apeteceu observar pessoas. Olho no olho. É o que me faz falta. Só. De tudo posso me despojar, caso queira, menos das lembranças.

O homem é uma máquina de lembrar. Toque um músculo, olho, barba, unha do pé, mamilo, saco; desperte pela manhã ou a qualquer hora da madrugada, olhe-se no espelho, ensaie um sorriso, um esgar de dor e, logo, uma lembrança salta à frente. Não há como evitar. Acontece, aconteceu. Não que eu quisesse. Inevitável.

Lembrei do Amazonas. De quando estivemos lá. Do que fizemos por lá. Das esperanças que levamos. Do desencanto com que voltamos. Lá nos despimos dos preconceitos, do cotidiano, das inibições, das palavras inúteis, dos sentimentos mesquinhos. Desnudamo-nos por completo. Vivemos. Tanto quanto possível. A tudo nos permitíamos. Queríamos salvar o mundo, mas no fundo sabíamos que o mundo não tinha salvação. Queríamos provar de uma vida sem nenhuma das frescuras a que os homens nos submetiam e acabamos submetidos. Queríamos encontrar a liberdade entre quem, presumíamos, eram livres. Presumimos mal. Éramos jovens. Sonhadores. Divinos e maravilhosos. Embalava-nos o sonho. De que, um dia, acordaríamos e tudo se encontraria como imaginávamos. Embora, desde então, a percepção fosse diferente.

Resta o pôr do sol e o licor de pitanga. Até quando?

11/02/2008

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  Sérgio Napp

Sergio Napp, nascido em Giruá/RS em 03.07.39, é engenheiro civil, escritor e letrista. Premiado em festivais de música no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, tem mais de cem trabalhos gravados por artistas locais, nacionais e internacionais, sendo autor de um dos clássicos do regionalismo gaúcho, Desgarrados, em parceria com Mário Bárbara. Foi Diretor da Casa de Cultura Mario Quintana entre 1987/1991, 1997/1998 e 2003/2007, tendo coordenado a equipe responsável pela reciclagem do Majestic Hotel em Casa de Cultura Mario Quintana.

sergionapp@terra.com.br
www.sergionapp.com


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