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Reflexão

Vernissage & Política
Sérgio Napp

O depressivo-sonhador vai a um destes eventos em que só os amigos mais chegados, curiosos e furões comparecem: um vernissage. Mal entra e já um garçom lhe coloca nas mãos uma taça de espumante e oferece-lhe, em uma bandeja, canapés. O depressivo-sonhador agradece e aceita o espumante. Com a taça em mãos olha as esculturas expostas. De fato o seu amigo exibe uma qualidade surpreendente em seu trabalho. Procura-o com os olhos e o encontra junto a amigos. Aproxima-se, abraça-o e derrama uma série de cumprimentos superlativos.

Não que ele não os mereça, ao contrário. Conversa um pouco com o amigo e volta a ziguezaguear entre as esculturas. Observa a fauna que se faz presente. Algumas pessoas conhecidas, outras não. Algumas destas, em posições estratégicas na sala, lhe despertam a atenção. Ele as reencontra, sem qualquer cerimônia, a cada vernissage ou evento onde bebes e comes são servidos. Como tomam conhecimento destes acontecimentos sociais, ele desconhece. Anônimos que se misturam entre o restante dos convidados e, mais que o material exposto, cuidam, especialmente, do garçom e do que ele traz consigo. Como se fosse um jogo de cartas marcadas. Num correr de olhos, ele o vê: o político aquele!

Conversa animadamente em um grupo. Seus gestos e trejeitos são exuberantes, próprios de quem se trata. O depressivo-sonhador tenta se afastar de seu entorno inutilmente. O político o vê e corre ao seu encontro (estamos em vésperas de eleição, sempre é bom lembrar). Abraça-o com tamanho ímpeto que a taça de espumante quase se quebra contra seu peito. “Como vai este grande amigo? Há quanto não nos encontramos?” No mínimo há quatro anos, pensa o depressivo-sonhador. “O que andas fazendo?” E sem espaço para responder o político imediatamente completa:”Com certeza trabalhando pela cultura! Ah, a nossa cultura, um bem inestimável! Sabemos, principalmente tu, o quanto ela representa para a humanidade. De maneira especial para os jovens!”. O depressivo-sonhador engole em seco e tenta argumentar, mas o outro não lhe dá tempo. “E seus pais como estão?”.

O depressivo-sonhador o encara com espanto. Nem imaginava que ele conhecesse seus pais. Pensa em contar que a mãe falecera há alguns meses, mas desiste: não tem interesse em continuar uma conversa que o aborrece. “Sabes quem encontrei outro dia? O Ermenegildo! Falou muito sobre o teu trabalho com rasgados elogios!” O depressivo-sonhador fica se perguntando: Quem será esse tal de Ermenegildo? O político não dá tréguas. “Gosto de falar com pessoas inteligentes!” O depressivo-sonhador nunca desconfiara disto. “Deves ter percebido como a imprensa se volta contra nós! De um momento para outro estamos sendo considerados o que há de pior para a sociedade! Tudo recai sobre nós, temos culpa de tudo: dos mensalões, dos grampos; das acusações que nos são feitas por qualquer um! Baboseiras! Trabalhamos com afinco;há vezes em que não dormimos deliberando! Nossas atividades nos exigem ao limite! E com os poucos assessores que temos... Não há muito, porque sugerimos a criação de apenas mais 20 cargos para nossa assessoria direta foi um terremoto! Mas nós precisamos! Sei que o amigo entende o nosso drama, mas esta tal de imprensa... Nos acusam de ganharmos em excesso como se isso fosse pecado! Crápulas! E agora insistem na tal de ficha-suja! Mas o que é isto? Em que país estamos? Por acaso querem acabar com a democracia tão arduamente conquistada? Não imaginas quanta amargura...”

O depressivo-sonhador olha para todos os lados tentando uma forma de escapulir. Por sorte, o político dá de olhos em outra vítima e atira-se em sua direção. O depressivo-sonhador permanece um tempo pensando se tudo o que acontecera nestes últimos minutos fora verdade ou ilusão. Depois, sem se despedir de ninguém se afasta e reflete: “De que valeram a luta pela redemocratização, o exílio, as passeatas pelas diretas já, os discursos inflamados, o exílio? Onde ficaram os sonhos dos que participaram dos movimentos? Que fim levou a esperança de dias melhores?” Caminha sorumbático pela avenida sem cuidar por onde passa ou com quem cruza. “Que país é este? Isto não pode ser o resultado de tanta luta. Não a resposta aos nossos ideais! Isto não é o Brasil que sonhamos!” O depressivo-sonhador apanha um cigarro do maço, acende-o e o traga soltando a fumaça como se fosse um suspiro. “Pra salvar este país, conclui, só não elegendo ninguém”.


24/09/2008

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  Sérgio Napp

Sergio Napp, nascido em Giruá/RS em 03.07.39, é engenheiro civil, escritor e letrista. Premiado em festivais de música no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, tem mais de cem trabalhos gravados por artistas locais, nacionais e internacionais, sendo autor de um dos clássicos do regionalismo gaúcho, Desgarrados, em parceria com Mário Bárbara. Foi Diretor da Casa de Cultura Mario Quintana entre 1987/1991, 1997/1998 e 2003/2007, tendo coordenado a equipe responsável pela reciclagem do Majestic Hotel em Casa de Cultura Mario Quintana.

sergionapp@terra.com.br
www.sergionapp.com


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