Dos sessenta e nove anos que carrego, com certa facilidade, sessenta deles, por certo, dediquei, entre milhares de outras coisas, à arte de catar palavras. Parece-me que trabalho com as palavras desde sempre ou, pelo menos, desde o primeiro ano do primeiro grau (naquele tempo, primário). E não julgo que tenha sido em vão.
Disbordar. Isso mesmo, disbordar era a palavra encantada que me trazia um som diferente e um sentido que não percebia muito bem. Claro que a empreguei na primeira redação daquele ano que se iniciava. E causou espanto. Por este espanto, dediquei-me a outras. E outras. Procurar palavras desconhecidas ou cujo sentido fosse, ao menos, estranho passou a ser meu secreto desejo.
Dou-me conta disso tudo ao falar para um grupo de estudantes noite dessas. Dou-me conta, agora conscientemente, que em grande parte da minha vida fui um trabalhador da palavra. Um palavrador. E tem sido uma experiência incrÃvel!
Surgem, as palavras, nas horas mais estranhas. Numa fria madrugada me acordam, me sacodem e dizem: Levanta-te e anda! E que faço senão obedecê-las? Tiritando, saio atrás de caneta e papel para registrá-las. No ônibus, na fila do Detran, na corrida no parque. Quando menos prevenido me encontro elas me encontram. Numa reunião com amigos, no momento em que me preparo para um comentário qualquer, ela surge. Suspendo o gesto para recebê-la e brindo intimamente sua aparição. Os amigos não entendem. Que pode uma palavra, uma simples palavra, para perturbar um discurso? Ah, os amigos nunca entenderão, mas ela pode tudo.
Eu, palavrador, tenho feito delas uma companhia de muitas e muitas horas, entre um cálice de vinho e um concerto de Bach. Tenho, com elas, uma luta cotidiana. Com várias derrotas e algumas vitórias. Que as palavras, caros leitores, não se rendem por qualquer elogio. Não se entregam a um simples toque de dedos. São orgulhosas, as palavras. Conhecem o seu valor. Maravilhosamente carinhosas, as palavras, quando sabemos conquistá-las.
Eu, no meu ofÃcio a respeito. Essa que se entrega e se deixa burilar, diamantemente esplendida e luminosa, por tantos escritores, o que me causa inveja. Essa que, de vez em quando, pousa em mim cheia de encantamento.
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